Recordemos que na versão inicial o enredo tinha como argumentista principal a Guerra Fria, e como décor filmatográfico a ilha de Cuba, a pouco mais de uma centena de quilómetros dos EUA. Já a base do enredo teve como principal motivo a tentativa de colocação de mísseis soviéticos direccionados de Cuba para os EUA. A sua possível colocação poderia ter transformado a Guerra Fria em uma quase certa 3.ª Guerra Mundial.

Perguntar-me-ão, e bem, o que me leva a relacionar a Crise dos Mísseis de Cuba (os russos definiram-na como Crise Caribenha e os cubanos como Crise de Outubro) com a actual situação caótica político-militar na Síria.

Além dos mesmos actores principais já referidos, o facto de, ao contrário de Cuba, onde prevaleceu uma surda guerrilha de palavras, aqueles participam militarmente no palco do conflito em posições opostas – embora sob a capa de um inimigo comum, o terrorismo – e com actores secundários a quererem implicar EUA e Rússia em um hipotético confronto directo.

Ora, isto só por si não seria motivo suficiente para que os dois casos fossem considerados quase como um remake um do outro. Existem outros factos que levam a esta consideração.

Desde o desmembramento da União Soviética e a deficiente situação política, económica e militar da Rússia que a Guerra Fria tinha entrado numa quase completa letargia, até que na reunião de Munique para a tentativa de cessação de hostilidades na Síria, entre o regime de Assad, apoiado pela Rússia e pelo Irão, e a oposição armada, apoiada na sua generalidade pelos EUA e Arábia Saudita, o primeiro-ministro russo Dmitri Anatolievitch Madvedev ter anunciado que estava iminente o retorno da Guerra Fria.

Mas se Medvedev afirmou que a Guerra Fria estava de volta, também alertou que uma possível invasão terrestre da Síria pelas chamadas forças de coligação internacional contra o Daesh (Estado Islâmico), nomeadamente forças turcas, poderá desencadear uma 3.ª Guerra Mundial.

Tal como em Cuba uma conversa entre John F.Kennedy e Nikita Kruschev conseguiu despoletar o problema, também parece que uma recente conversa entre Obama e Putin poderá ter amenizado a questão síria.

Poderia, se no intervalo não houvesse dois protagonistas que se posicionam como segundas figuras mas com poder para transformar o problema da Síria num problema geopolítico bastante complexo e perigoso para a comunidade internacional: a Turquia e a Arábia Saudita.

A Turquia por duas razões distintas.

De um lado, há um tentar “lavar a cara” por parte do aparelho governativo – em particular, da casa presidencial turca, – face às acusações russas de que a família Erdogan estaria a transaccionar petróleo sírio explorado pelos islamitas radicais do Daesh, via Turquia, e que os turcos nunca conseguiram desmentir nem digerir.

Do outro, o facto de um dos principais grupos que opera na Síria contra o Daesh, e com vantagens militares e territoriais, serem os curdos que a Turquia considera como terroristas. Ora, os curdos, nos ataques aos radicais do Estado Islâmico, estão a aproximar-se “perigosamente” – na concepção turca – da fronteira do país de Atatürk e, com isso, podem elevar a moral independentista dos curdos turcos.

E um dos problemas da questão síria, ainda que de forma indirecta, é o renascer do Curdistão independente o que, só por si, já era uma fonte de preocupação para os turcos. Acresce o facto de o Curdistão iraquiano já ter uma larga autonomia e prever avançar para a independência, não sendo de excluir que “pequenas” parcelas sírias e iranianas se possam juntar, talvez com o beneplácito de Damasco e de Teerão.

Se o Curdistão é a fonte de preocupação turca que poderá levá-los a intervir militarmente na Síria, havendo informações que confirmam já a sua presença – ainda que desmentida, oficialmente pelo Governo turco – nos palcos militares sírios, como as do jornal britânico Independent, citando os turcos da Anadolu Agency, de que teria havido troca de tiros entre sírios e turcos em Calibogazi, na província síria de Hatay, também é verdade que a vertente religiosa está bem presente entre sunitas (liderados pelos sauditas) e xiitas (liderados pelos iranianos), com a tentativa de predomínio de uma sobre a outra. Registe-se que os turcos islamitas são predominantemente sunitas, havendo algumas importantes minorias turcas que seguem o rito xiismo duodecimano, como os alevitas (a principal minoria xiita), os azeris turcos, os khorasani e os nómadas qashqai.

Ou seja, será mais real que o problema sírio chama-se Assad (que sauditas, EUA e uma parte do ocidente quer derrubar a favor de oposicionistas ditos moderados, enquanto russos e iranianos o desejam manter como líder oficial até novas eleições) ou a dialéctica religiosa entre quem predominará no pós-Assad e Daesh: no caso o sunismo ou xiismo?

Mas se a questão seria meramente política-religiosa com resquícios militares – algo a que o Próximo (ou Médio, segundo a escola geopolítica norte-americana) Oriente já está habituado – qual a razão, excepto a já referida questão curda e a “afronta” russa contra a família de Erdogan, qual a razão que leva os turcos a se arreigarem na questão síria?

É que um possível alinhamento entre russos e iranianos na Síria poderia asfixiar a Turquia entre a Rússia e o Irão e catapultar – de volta uma vez mais a questão – o Curdistão turco para uma integração num futuro Curdistão independente. E o Curdistão, dizem, é uma das zonas mineiras mais ricas da Turquia. E é a conjugação destes três importantes factores que torna os turcos uma crescente preocupação para a comunidade internacional, e que deveria levar esta a reflectir nas palavras de Medvedev.

Não esquecer que caso se verifique um confronto – como avisam os russos – entre estes e turcos, com possíveis danos colaterais em território turco, isso poderia levar Ancara a tentar fazer invocar o artigo 5.º da NATO declarando-se atacada e, nesse caso, diz o artigo que: “An attack on one Ally shall be considered na attack on all Allies” (um ataque a um qualquer membro da NATO será considerado como um ataque a todos os Estados-membros da Aliança Atlântica). Ora, é esse receio que leva a Rússia a avisar do perigo de se deflagrar uma 3.ª Guerra Mundial.

Mas, e em paralelo e em complemento, se russos e sauditas parecem estar a digladiar-se em território sírio pela predominância política, militar e religiosa (esta no caso saudita), a nível económico parecem estar a alinhar-se. O reingresso do Irão na cena económica internacional e a entrada do crude iraniano nos meios distributivos mundiais levaram os dois contendores a se unirem na manutenção da produção do crude a níveis de Janeiro, para evitarem a contínua derrapagem do preço do barril de petróleo.

Acresce que o Irão deseja transaccionar em yuan ou euros e não em dólares, o que prejudicaria seriamente quer a economia saudita, muito dependente dos petrodólares e da sua estabilidade financeira, quer também a economia russa para as suas transacções comerciais, ainda que esta esteja sob o espectro das sanções económicas ocidentais devido à questão ucraniana.

Ora isto leva-nos a uma questão. Será que o Mundo se prepara para ver assinado um futuro tratado económico entre as cada vez mais influentes – ainda que os BRICS o tentem evitar –, moedas económico-financeiras que são o dólar, o euro e o yuan, na linha do que aconteceu após a Crise dos Mísseis de Cuba?

Recorde-se que após esta crise e, perante o facto de o Mundo se ter visto perante a possibilidade de se autodestruir devido à capacidade das armas nucleares, em 1963, EUA, União Soviética e Reino Unido assinaram um acordo que proibia os testes nucleares na atmosfera, no alto-mar e no espaço que, em 1968 e com a ratificação de 60 países, se tornou o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.

Um Tratado económico e financeiro entre as três mais influentes moedas internacionais poderia levar a uma melhor convivência económica entre os Estados. Não esqueçamos que a “recente constipação” da economia chinesa levou à queda de muitas praças financeiras mundiais e arrastou muitas economias para o descalabro.

Veremos o que nos trará o final do enredo “A crise da Síria”!