Uma geração de angolanos cresceu a ver as histórias do "problemático, imbumbável, maldisposto, traiçoeiro e mentiroso" Mankiko, assim caracterizado por Pepetela, no prefácio de uma das colectâneas. Outra geração habituou-se a ler e a interpretar o mundo, as contrariedades do quotidiano, as makas e os mambos de toda a ordem desta e de outras personagens, através dos desenhos do cartoonista.

"Apreciando o cenário... nas calmas!" é o lema de Mankiko. Máxima roubada a Joaquim Lunda, um dos vários nomes a quem Sérgio Piçarra expressa agradecimentos nesta obra dupla, que sintetiza a sua carreira e que ajuda a compreender a vida do país. Por isso, Pepetela se refere a Piçarra como um "retratista dos muitos passos que foram dados pelo país, uma referência que ajuda a escrever a História nacional".

Reginaldo Silva secunda Pepetela e sublinha o contributo que o desenhador dá para a reconstituição da história do país, evidenciando o papel que o cartoon tem hoje na imprensa internacional e também nacional. "O jornalismo de investigação está a ser substituído por este jornalismo de opinião", notou o jornalista e comentador da TPA.

Isso explica o impacto das tiras com as aventuras e diatribes de Mankiko, no Rede Angola, e a forma como se propagam nas redes sociais, com Reginaldo Silva a temer que um dia venham a ser consideradas "terrorismo cómico". A expressão vingou e foi repetida várias vezes na noite de lançamento dos livros, apesar do incómodo provocado em alguns dos presentes, temendo o efeito da sugestão do jornalista, a quem coube fazer a apresentação da dupla obra.

Modalidade retaliativa

Assumindo um "défice genético" para o desenho, que compensa com a "escrita recreativa", Reginaldo Silva passou em revista o percurso de Sérgio Piçarra e as atribulações da sua carreira, marcada por algumas vicissitudes, como a queda de um director do Jornal de Angola, por causa de um dos seus cartoons.

Graças "à santa internet" e às redes sociais, o cartoonista não está tão sujeito hoje à "modalidade retaliativa", a bem dos leitores e muitos admiradores que tem vindo a acumular, desde que iniciou a carreira.

Piçarra era ainda adolescente e "passava horas a fio no fecho do Suplemento Infantil" do Jornal de Angola, o diário onde nasceu o imbumbável Mankiko e que um dia lhe fechou as portas e as suas páginas, por causa de um cartoon mais atrevido que o tornou persona non grata.

Apesar da saída, o Mankiko não parou. "Ficou só um pouco mais imbumbável, tentando negócios, inventando máquinas, experimentando truques, investindo em "bisnos", conhecendo novos kambas e novos adversários".

Do papel, e após regressar à imprensa, em 2008, nas páginas do Novo Jornal, com um cartoon semanal, Sérgio e o seu amigo problemático saltaram para a plataforma digital, no Rede Angola. Ali testou o poder das redes sociais. "Quando comecei a partilhar os primeiros cartoons, tinha poucos "likes". Comecei a ficar preocupado. Pouco a pouco, isto começou a crescer e já chego às 3.500 partilhas", conta, lamentando que num país com "tanta gente talentosa" haja tão poucas pessoas a dedicar-se a este tipo de arte.

Uma arte em que teve como mestres Henriques Abranches e Manuel Dionísio, a cujas memórias dedica estes dois livros, feitos de muitas contribuições. "Cada um deu um bocado para tornar isto possível", sublinhou.

Pressões permanentes

Sérgio Piçarra recusa a fama de corajoso. Diz que os seus cartoons não são agressivos - "ainda não cheguei a esse ponto", atira, em resposta a uma pergunta, exemplificando com o trabalho de cartoonistas noutros países, como Portugal, Brasil e Áfricado Sul - mas admite que sente pressões permanentes, vindas sobretudo da família e dos amigos, que temem aquilo que Reginaldo Silva define como "modalidade retaliativa".

Desistir não está no horizonte de Sérgio. Há muitas histórias para contar, muita vida a ganhar forma nas pranchetas. Muita inspiração a emergir do quotidiano. Um quotidiano "riquíssimo em makas e mambos de toda a ordem, passadas, presentes e futuras" e que ultrapassam de longe "os recursos naturais" do bairro da Bananeira, de onde o Mankiko é originário, puro e autóctone.

"Daí que, nas suas desventuras, qualquer semelhança com a realidade, não passe mesmo de mera coincidência", como adverte o autor da personagem. Mesmo que ela seja parecida com um vizinho de uma das pessoas presentes na Chá de Caxinde.

"Tem o mesmo andar, o rabo empinado para trás, a mesma malandrice, o mesmo falar", ilustrou o homem, quando perguntou a Piçarra se ele se tinha inspirado nessa pessoa. Um nome que o autor de Mankiko nunca ouvira falar, mas que sublinha a perenidade da personagem e a sua fidelidade à realidade que retrata, como sublinha Pepetela. É isso que lhe dá força e solidez.