Uma distinção nada má. Sobretudo para quem não resiste "à sedução da fama em frente as câmaras da televisão", como sucedeu a propósito de um recente e despropositado debate na SIC com o jovem e itinerante diplomata angolano Luvualo de Carvalho.

Sei que seu pai, Mário Soares, foi um fervoroso combatente antifascista, incansável amante da ideia do mercado, do europeísmo e da democracia representativa, e implacável opositor do radicalismo de esquerda que pulverizou Portugal no auge dos anos da brasa, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974.

Sua extremosa mãe, Maria Barroso, distinguir-se-ia, livre da sombra do marido, por trilhar o mesmo percurso. Só conheço João Soares, portanto, de nome, mas sei que não morre de amores por uma das muitas partes de Angola.

A parte que está no poder. Tem toda a legitimidade para o fazer. Está "casado" com uma outra parte em regime de comunhão de bens.

A simpatia por essa parte não me faz gostar ou deixar de gostar dele. É-me rigorosamente indiferente. Mas se não perco tempo a ouvi-lo falar sobre Angola, recuso, porém, disparar-lhe insultos.

Insultá-lo por causa dalgumas palermices que debita sobre Angola seria baixar ao nível do insultador. Não o faço por uma elementar questão de decência.

E não o faço quer em relação a João Soares quer também em relação a Jaime Nogueira Pinto ou quer ainda em relação a Paulo Portas, sobre os quais, designadamente no que respeita a estes dois últimos, ninguém, no entanto, me leve a mal por recusar aceitar o direito ao esquecimento...

O primeiro, mantendo-se fiel ao grau de parentesco que o liga a uma das partes, preserva o estatuto de um dos seus procuradores. Nada contra.

Os outros dois, depois de terem estado durante muito tempo do outro lado do "arame farpado", estiveram um outro tempo "à procura" da outra "porta" até que "a conseguiram franquear". Também nada contra.

Em comum, cada um ao seu modo, o trio glorifica duas das várias partes de Angola. Uma das partes - a UNITA - venera João Soares. A outra parte - o MPLA - detesta-o e, paradoxo dos paradoxos, agora até celebra a "lua de mel" com quem nunca, no passado, gostou de ir para a cama: Jaime Nogueira Pinto e Paulo Portas.

Estas duas partes representam no conjunto uma parte significativa de Angola mas não representam Angola inteira.

Do mesmo modo, que não podem substituir o todo, aqueles três não são exactamente a fotografia de Portugal.

E se João Soares faz as delícias de uma parte ou se Jaime Nogueira Pinto e Paulo Portas são agora os convidados "Vip" da outra parte, o trio nada representa para Angola.

É verdade que beneficiam, por aqui, de recepções apoteóticas, mas a venda dos seus produtos é francamente lastimável...

A João Soares não lhe dou, por isso, a importância que, indevidamente, lhe reserva o espaço mediático e que, na verdade, não tem.

Dos outros dois, como a minha memória não é curta, não esqueço o comportamento de gente que depois de ter escarrado no passado na cara de uma das partes, agora, "para adaptar o sapato ao pé, não se importa de cortar os dedos para salvar o sapato"...

O que me confrange não é o novo sapato que calçam; é por que o calçam. Movidos unicamente pela atracção do verniz do novo sapato, não espanta, por isso, que de tempos a tempos, se consuma a velha máxima: "mudam--se os tempos, mudam-se as vontades".

Há, porém, um poder do qual o verniz não dispõe: o verniz não consegue (a)trair a memória do tempo.

O que me confrange é que se uma das partes vai às compras com uns, logo a outra parte se apressa a estender o tapete vermelho ao outro.

O que me confrange não é a (in) consistência da sola, nem o brilho lusco-fusco dos sapatos do trio. O que me confrange é a natureza e o gosto dos donos das nossas sapatarias. O que me confrange, na verdade, é termos sapateiros com gostos tão mauzinhos...

Mas, se em matéria de alianças, uma das partes mantém-se fiel ao seu paradigma histórico, algo mudou na outra parte. E pelos (des)gostos não parece ter sido para melhor. Estando em sintonia, merecem-se!

Mas, se o percurso daquele trio me é indiferente, os gostos e os desgostos dos seus anfitriões não nos devem levar a olhar a árvore à lupa, enquanto nos perdemos alegremente na floresta...

Não nos devem levar a olhar para Portugal com desdém.

Porquê?

Porque se Portugal é pequeno em dimensão territorial, é, porém, um país de referência em indicadores - que, colocando seis das suas universidades entre as 500 melhores universidades do mundo ou em 30.º lugar em índice de liberdade, deveriam levar as nossas elites a absterem-se de comparações, que só ridicularizam a sua ignorância, arrogância e pequenez.

Deveriam levar as nossas elites a reflectir por que razão, ao contrário do que acontece com a nossa população, em Portugal, os seus cidadãos não precisam de recorrer ao estrangeiro para receber tratamento médico diferenciado.

É tempo, pois, de as nossas elites abandonarem a sobranceria para olharem primeiro para a miséria que andam a plantar dentro de casa em matéria de saúde pública, ensino e educação.

Porque se não o fizerem, por mais que lhes venha custar aceitar, nesse e noutros pontos, estarão condenadas a dar razão a João Soares...

Porque a hipocrisia está a levar as nossas elites a fingirem não gostar de Portugal. Mentira! É com muito gosto que elas tratam a antiga metrópole como a sua segunda pátria...

A hipocrisia está a levar as nossas elites a olhar para Portugal com desprezo. Mentira! É com imenso prazer que elas vão para lá todos os anos gozar as suas férias...

A hipocrisia está a levar as nossas elites a acreditarem no presente de Angola como "um país bom para se viver".

Mentira! É com indisfarçável medo dos amanhãs que elas vão para lá comprar casas para fixar as famílias... (...)

(Pode encontrar esta crónica integral na edição nº 450 do Novo Jornal, nas bancas, ou em versão digital, que pode pagar em kwanzas)