A Reserva Estratégica Alimentar do Estado, aprovada na segunda-feira pelo Conselho de Ministros para garantir o abastecimento de alguns alimentos essenciais durante períodos de crise, está prevista para finais deste ano e deverá ser constituída essencialmente por produtos nacionais, incluindo 20.000 toneladas de arroz, 10.000 toneladas de farinha de milho, 21.000 toneladas de farinha de trigo e 15.000 toneladas de feijão.

Segundo o ministro do Comércio, Jofre Van-Dúnem Júnior, esta reserva permitirá que, "em situações de crise, calamidade ou situação de falta de produtos da cesta básica, o Estado intervenha no mercado para manter o equilíbrio de preços e assegurar a segurança alimentar".

Mas as notícias da criação de uma Reserva Estratégica Alimentar do Estado vêm, pelo menos, de 2014, quando a ministra do Comércio era Rosa Pacavira e Jofre Van-Dúnem Júnior estava à frente do conselho de administração do Entreposto Aduaneiro de Angola.

Nessa altura, segundo notícias da época (Rádio Nacional, 19-03-2014), estavam já em construção os armazéns que dariam suporte ao projecto, "num processo implementado pelo Ministério do Comércio e assegurado pelo Entreposto Aduaneiro para dar resposta às calamidades naturais" que pudessem surgir futuramente no país.

Também em Janeiro de 2017, o agora ministro do Comércio, Van-Dúnem Júnior, confirmava a existência dessa reserva à Lusa.

"Fisicamente [a reserva] já existe, mas não na quantidade desejável", explicou Van-Dúnem Júnior em janeiro de 2017, enquanto presidente do conselho de administração do Entreposto Aduaneiro de Angola, empresa pública criada em 2002 com a função de gerir esta reserva do Estado, além da manutenção da estabilidade dos preços do mercado e de importação.

A proposta agora em estudo, e que ainda carece de regulamentação, prevê uma Reserva Estratégica Alimentar com uma componente física de armazenamento, em pontos estratégicos do país e com capacidade para cobrir entre "três a seis meses" das necessidades de consumo.

Uma segunda componente será financeira, devendo garantir o mesmo período de três a seis meses das necessidades de consumo de produtos da cesta básica e que, segundo Jofre Van-Dúnem Júnior, em declarações à Lusa, consiste numa carta de crédito devidamente aprovada, que só careça de ser accionada "se as condições necessárias se verificarem", garantindo de imediato a importação.

"Até porque pode ser necessário accionar essa reserva em caso de calamidade. Seria necessário accionar uma reserva financeira", sublinhou o responsável.

"A aposta deve ser nos pequenos agricultores, não em encher os armazéns" - Belarmino Jelembi, director-geral ADRA

Belarmino Jelembi, director-geral da ONG Acção de Desenvolvimento Rural e Ambiente (ADRA), considera que reservas alimentares no contexto actual não se resolvem com produtos colocados em armazéns, mas antes aumentando o nível de produção no país.

Para o director da ADRA, há que encher os celeiros das famílias, mas antes, é preciso matar-lhes a fome.

"Num país em que grande parte da população passa fome não faz sentido falar em futuras situações de calamidade ou de crise. Hoje vivemos uma situação de crise e de calamidade", diz.

Belarmino Jelembi critica as opções feitas ao longo dos anos e espera que, "com a mudança de Executivo, com a alteração de discurso de que este Presidente já deu mostras", o paradigma seja alterado.

"Ao longo destes últimos anos, por via dos projectos megalómanos, não se resolveu o problema da produção. A aposta deve ser nos pequenos e médios produtores e essa aposta nunca foi feita".

A capacitação dos agricultores, a agricultura como alavanca das famílias deveria, segundo o director da ADRA, ser a grande prioridade do Governo liderado por João Lourenço.

"O Governo gastou milhões e milhões em mega projectos, em fábricas que agora estão abandonadas por falta de peças, que nunca funcionaram. Tem de começar a pensar-se nas coisas numa escala mais pequena, município a município", diz.

Segundo Belarmino Jelembi, há um desconhecimento profundo daquela que é a realidade do país, optando-se sempre por importar modelos sem viabilidade social, financeira e económica.

"Os sistemas de conservação não precisam de ser sofisticados, não vale a pena pensar em sistemas muito sofisticados se depois não há serviços locais de assistência e manutenção dos equipamentos. É preciso fazer as coisas à escala de cada comunidade."

E deixa uma pergunta: "Já existe produção suficiente para encher os tais armazéns?"

O director da ADRA entende que o país não pode nem deve continuar a gastar divisas na importação de alimentos: "Se pretendemos multiplicar em larga escala a produção de mandioca ou de batata-doce, por exemplo, não é preciso divisas".

"O feijão do Bié", exemplifica, "a sua multiplicação não exige importação, exige que se inicie um processo de selecção de sementes".

"O Estado importou, para esta campanha agrícola, sementes de milho da Zâmbia. Estamos sempre a deitar dinheiro fora. Nós supostamente somos mais ricos do que a Zâmbia, mas a Zâmbia consegue produzir sementes para exportar, sementes que depois nós compramos", declara.

"Vamos apostar nos pequenos e médios agricultores. As famílias é que têm de ter reservas".

"Mudou-se o treinador da equipa, mas a equipa continua a ser a mesma" - David Mendes, deputado da UNITA

David Mendes, deputado da UNITA, diz desconhecer que alguma vez tenha havido Reserva Estratégica Alimentar do Estado.

"Se tivesse havido, nós não teríamos situações de fome como aquela que se tenta ocultar no sul de Angola, quer na Huíla, quer no Namibe e no Cunene. Nós sabemos que ciclicamente temos tido crises de fome. E quem acompanha o padre Pio nessa luta, cuja voz é a única que não se cala, sabe que temos vários períodos de fome", refere.

Sobre as declarações de Van-Dúnem Júnior, em Janeiro de 2017, em que o então presidente do conselho de administração do Entreposto Aduaneiro de Angola garantia que "fisicamente [a reserva] já existe, mas não na quantidade desejável", David Mendes é categórico: "Isso são histórias da Carochinha. Nós já tivemos um entreposto comercial e dezenas de empresas constituídas que não deram em nada, há centenas e centenas de armazéns abandonados. A verdade é que não há fiscalização desse dinheiro. É até dinheiro que sai do controlo do Parlamento, pois nem se sabe onde é usado esse dinheiro nem quem o usa".

"Os supostos beneficiários dos bens não têm conhecimento disso, e se os próprios beneficiários não conhecem a sua existência, como é que hão-de controlá-lo?", pergunta.

"Estamos habituados, nestes anos todos, a estas histórias de dinheiro que não é controlado e depois há um incêndio, uma seca, e surge uma acção de charme em que levam uns sacos de arroz, uns sacos de farinha de milho para as pessoas. É isso?"

David Mendes afirma também que "está mais do que na altura de sair dessa visão de que a população só se alimenta de farinha de milho e arroz".

"Isso não é alimentação condigna, porque as populações estão carentes de proteína, de vitaminas. Este hábito de dar apenas às pessoas o suficiente para sobreviver e mal. As pessoas têm é que viver. Com dignidade. E esse dinheiro é público, não é privado", lembra.

"Na altura da colonização, o poeta António Jacinto escrevia que o contratado era pago com fuba e peixe podre, então, enquanto país independente, o que é que estamos a dar às pessoas? A mesma coisa. Angola é um país onde se passa fome. Há que aplicar o dinheiro na produção e na agricultura familiar".

Para David Mendes, estas opções não têm a ver com desconhecimento do país, "têm a ver com as pessoas utilizarem os fundos públicos para a acumulação do seu capital privado". Para o deputado da UNITA, "apesar da esperança que surgiu durante os primeiros meses da governação de João Lourenço, tudo continua na mesma: Mudou-se o treinador da equipa, mas a equipa continua a ser a mesma".