O seu autor, Bob Woodward, não é um jornalista qualquer, porque carrega como garantia de credibilidade o facto de ter protagonizado, com Carl Bernstein, uma das mais notáveis investigações jornalísticas da história do jornalismo moderno, quando, em 1972, o escândalo "Watergate" dava os primeiros passos na imprensa norte-americana e o The Washington Post, onde ambos trabalhavam agarrou, o assunto para só o largar quando o então Presidente republicano Richard Nixon, em 1974, foi obrigado a deixar a Casa Branca, resignando ao cargo, humilhado, depois de ter tentado encobrir uma série de crimes que envolviam espionagem e conspiração contra adversários.

Ao longo dos anos subsequentes, até hoje, Bob Woodward, vencedor de dois Prémios Pulitzer, o mais alto galardão atribuído em todo o mundo a jornalistas, em 1973, devido ao Watergate, e 2002, pela cobertura do atentado às torres gémeas em Nova Iorque a 11 de Setembro de 2001, tal como Carl Bernstein, não deixaram créditos por mãos alheias e mantiveram uma coerência absoluta na forma como investigaram centenas de outros casos, quase sempre culminando esses processos com a publicação de livros que são hoje referências para quem está no jornalismo e na política, seja como fazer jornalismo ou como estar na política com lisura e competência.

Com este trajecto, Bob Woodward não só surge com este novo livro cheio de detalhes que revelam uma dimensão assustadora da governação actual dos EUA, como lhes junta uma credibilidade impar, nomeadamente no que respeita a alguns episódios relatados por antecipação à publicação do livro no jornal The Washington Post.

Um dos episódios mais caricatos revelados, e revelador da "incontinente" mente de Trump, foi a necessidade de um dos mais altos responsáveis da Administração norte-americana, Gary Cohn, o seu principal assessor económico, ter sido "obrigado" a "roubar" uma carta escrita pelo Presidente de forma intempestiva onde este determinava a quebra unilateral de um acordo comercial com a Coreia do Sul, o mais importante aliado dos EUA na Ásia, a par do Japão.

Por entre relatos que mostram uma Casa Branca à beira do "colapso nervoso", funcionando de forma caótica e inexplicável, em 448 páginas, produzidas a partir de milhares de entrevistas, o livro Trump: Medo na Casa Branca revela igualmente episódios concretos que mostram o quão perigoso pode ser ter um homem como Trump a dirigir a maior potência militar do mundo, mas também como esse mesma potência se defende quando tomba nas mãos de um Presidente "infantil" e "irracional", ignorando as suas ordens.

O mais saliente desses episódios foi uma ordem directa dada por Trump ao Secretário da Defesa, James Mattis, para que mandasse matar o Presidente da Síria, Bashar al-Assad, em 2017, após o suposto ataque com armas químicas, que Assad negou de forma veemente.

"Vamos matá-lo de uma vez! Vamos matar todos", disse Trump a Mattis, como revela o livro. Face a isto, o secretário da Defesa disse que sim a Trump, mas, nas suas costas, disse aos seus colaboradores mais próximos que não iria cumprir tal ordem por ser absurda, e mandou executar algo mais simples, que acabou por acontecer depois, que foi um bombardeamento limitado a estruturas militares do regime de Assad, sem consequências de maior.

Mas Mattis deixou ainda escapar o que pensava sobre Trump: "Tem a compreensão de um aluno do 5º ano".

São centenas de episódios que revelam um Presidente dos EUA "infantil", "medíocre" e "errático"... mas que já foram quase todos desmentidos, seja por Trump, seja pelos próprios citados no livro de Bob Woodward.

Trump desmente, Mattis desmente...

"Vigarice", é desta forma que Trump, se refere ao livro, garantindo que nunca os seus colaboradores falaram aquilo que vem descrito no livro.

"As suas citações são fraudes, uma vigarice para o público. O mesmo para outras histórias e citações", garantiu, deixando vincado que tanto James Mattis como o seu chefe de gabinete, John Kelly, "negaram de forma veemente que tenham dito o que vem publicado" e acusou o jornalista de ser um "operacional dos democratas", sublinhando o facto de a obra estar a ser publicada num momento eleitoral importante nos EUA, para o Congresso e Senado.

Trump procura ainda fragilizar a credibilidade de Bob Woodward, afirmando que este tem tido problemas em aguentar alguns dos seus trabalhados, apesar de lhe ter feito elogios quando, há uns anos, o jornalista escreveu um livro sobre a Presidência de Barack Obama e de ter dito recentemente que o repórter do Washington Post sempre o tratou com lisura.

Sobre a carta que o seu conselheiro de economia Gary Cohn, que já deixou a Casa Branca e não negou a história, lhe retirou da mesa para evitar problemas com a Coreia do Sul, Trump garante que isso "foi simplesmente inventado".

O secretário da Defesa James Mattis, também não deixou de alinhar com Trump neste contra-ataque, mas de forma menos veemente, dizendo apenas que o livro de Bob Woodward é "um género de literatura" muito própria das tricas de Washington, e que o facto de estar suportado em fontes anónimas não o "credibiliza".

"O livro não é um conjunto de histórias fabricadas por ex-funcionários frustrados, contadas para dar má imagem ao presidente", refere, por fim, e até agora, Sarah Sanders, a porta-voz da Casa Branca, na resposta em uníssono organizada pelos assessores de Trump a um livro que revela uma dimensão caótica da forma como os EUA são governados hoje.

A imagem de um Presidente infantilizado pelos seus mais próximos colaboradores e de uma Administração que já podia ter despoletado uma sucessão de episódios de extrema gravidade bélica se as suas ordens não fossem ignoradas, como é o caso da alegada intenção de matar o Presidente sírio, que daria espaço a uma escalada militar sem precedentes recentes com Moscovo.

O NYT também

Entretanto, o New York Times, um dos maiores jornais dos EUA do mundo, puboicou um artigo de opinião assinado, sob anonimato, por um alto funcionário da Administração norte-americana, onde este explica que existe um grupo alargado de altos funcionários que lutam diariamente para minimizar os efeitos eventualmente desastrosos de algumas decisões de Donald Trump.

Isto, de alguma forma, corrobora o que o livro de Bob Woodaard descreve, como, entre outros, por exemplo, o desvio do documento onde Trump ameaçava romper o acordo comercial com a Coreia do Sul.

O autor do artigo de opinião garante que não é de um partido diferente do de Trump, ou sequer de "esquerda", mas sim alguém que integra um grupo de pessoas que querem que a "Administração tenha êxito e que muitas das políticas tenham eco e que os EUA sejam mais seguros e prósperos", mas que não abdica do poder que têm para garantir que o Presidente dos EUA não continua a "danificar a saúde da República".