Ainda os(as) mais cuidadosos(as) estavam muito longe de dar à estampa, o que haveria de ser a senha fundamental que cuidava de dar corpo completo à verdade. Ainda não havia uma entrevista, um conto, um episódio, um relato de de tudo quanto se foi passando em dezena e meia de anos de luta.

Assistimos à chegada de todos. Em relativamente pouco tempo, percebeu-se quem era quem. Quem vinha da luta por patriotismo, por coerência, pela coragem, tantas vezes pelo desassombro, mas também pela fome, pela sede, pelo suportar corajoso e heróico das tremendas dificuldades. E os que abriram logo caminho para tirar proveito de um prestígio que nunca deviam ter tido. Porque personificavam a antítese de tudo isto. Porque à primeira oportunidade ganharam terreno para mostrar que queriam apenas tirar partido de uma luta da qual nunca tinham feito parte de verdade, nunca tinham dado o corpo ao manifesto.

Os anos passaram, a luta recomeçou, nova gente prestou-se a defender a Terra e novas gerações acorreram para dar corpo à utopia de décadas. Alguns abandonando até uma vida de conforto e de bem-estar, perceberam que era o momento de agir. De voltar a agir. Como os verdadeiros Heróis que no maquis, nas cadeias, nos campos de concentração, na luta política se entregaram à luta, pagando alguns com a vida a entrega a um sonho, a um projecto, a uma vida colectiva de dignidade, de justiça, livre, soberana e independente.

Fincaram os pés, lutaram e venceram. Teimosos e obstinados, muitas vezes com pontos de vista contrários aos que então comandavam, deram o corpo ao manifesto e venceram.

Hoje, quarenta e dois anos depois, alguns estão a morrer cedo. Demasiado cedo. É o caso do General João de Matos, que acaba de ir descansar. O descanso do guerreiro até pode ser merecido, mas a Pátria precisava dele ainda. E de outros, que nos vão deixando também precocemente, deixando-nos com a visão, provavelmente egoísta, de que precisamos deles, de que continuaremos a necessitar deles, mesmo em paz.

Os princípios que aprendemos a defender ensinam-nos que os homens nascem todos iguais, devendo ter sempre à partida os mesmos direitos e os mesmos deveres. A geração do General João de Matos teve sempre, mais de metade da sua vida, mais deveres do que direitos. Mais obrigações do que privilégios. Mais guerra que paz. Foi obrigada a crescer a correr e a ultrapassar-se a si própria, quando foi chamada a pôr fim a uma guerra que já esgotava a generalidade dos angolanos. Essa geração não teve praticamente vida própria, não amadureceu proporcionalmente ao avançar da idade. Como várias gerações do antes e pós-Independência, viu-se obrigada a tornar-se adulta muito rapidamente, ganhando uma autonomia e um pensamento muito próprios, os quais só encontramos paralelo em outros países que viveram as mesmas tragédias que nós, em outras guerras também impostas. Como nos impuseram os sucessivos conflitos que vivemos e que a

África e o Mundo parece terem-se esquecido rapidamente. O mundo mudou e o que lhes interessa, como há séculos, é que lhes continuemos a servir de matéria-prima, seja física seja material, desde que lhes dêmos garantias de manutenção da sua qualidade de vida e da sua prosperidade. O problema para eles é que os princípios se mantêm, nem todos os abandonaram e, um pouco por todo o lado, a resistência contra as novas formas, abertas e descaradas de dominação mantém-se e em alguns sítios vai crescendo.

O exemplo do General João Matos não pode ser como vários outros, não muitos, que os Heróis não são assim tantos, não pode ser esquecido com o passar do tempo, com o correr dos anos. É verdade que nascemos iguais. Mas no correr desta estrada que é a vida, uns mais do que outros, acabam por estabelecer diferenças essenciais que os colocam, para todo o sempre, como exemplo a seguir. A coragem, a dignidade perante as adversidades, a visão rara e inteligente, a autonomia de pensamento, o patriotismo, a entrega a uma causa comum não devem ser esquecidas. Não podem ser esquecidas. Para quem, como nós, tem uma visão da vida laica e republicana, resta a divisa que temos: Para nós não há morte nem princípio. Até já, nosso General!