Existe na prática o perigo de se colocar nas mãos da «rua» o "poder de decidir" em função de considerações e opiniões as mais das vezes subjectivas e influenciadas por quem tem todo o interesse em que a autonomia e a independência do Poder Judicial não se tornem uma realidade definitiva.

Não podemos nem devemos, é verdade, retirar o direito a cada um opinar como bem entende, em função da visão que tem da matéria em questão. Mas essa, também, não deve invadir ou, em última análise, servir de instrumento de pressão de qualquer espécie. Principalmente quando, durante anos, nos queixámos (quase) todos da falta de independência do Poder Judicial e agora que se verifica um esforço real para tal suceder parte das pessoas acaba por contribuir, conscientemente ou não, para a sua vulgarização.

O julgamento do ex-ministro dos Transportes é um assunto demasiado sério e grave para que possamos - como se faz com o futebol, com as disputas partidárias ou com episódios com ou sem graça do nosso quotidiano - transformá-lo numa discussão de taberna na praça pública, com os habituais desconchavos e excessos de quem não consegue utilizar esses meios, sem obedecer a estratégias que ultrapassem a sua própria consciência e o seu pensamento sério e ponderado sobre qualquer matéria.

Por isso, se não é ilegal que as alegações da defesa do ora arguido tenham sido colocadas à disposição do público imediatamente e na sua totalidade, a seguir à sua apresentação em tribunal, já se reveste de alguma gravidade insinuar que poderia ter sido a procuradoria a fazê-lo. Como se fosse possível passar um atestado de estupidez ao mais comum dos cidadãos que se pergunta, legitimamente, que interesse poderia ter a acusação em divulgar aquela contestação. Se a isto juntarmos as declarações de votos vencidos do juiz presidente do Tribunal Constitucional e de outro seu colega contra a prisão preventiva do ex-responsável pela pasta dos Transportes, cirurgicamente difundidas quer por órgãos de informação quer nas redes sociais, não nos obrigará a somar dois mais dois e a questionar: que interesse haverá nesta vaga repentina e de forma alguma ingénua? Por via das dúvidas consultámos um reputado jurista que, relativamente à questão colocada sobre se houve violação do princípio da presunção da inocência e do direito à liberdade, nos respondeu assim:

"A resposta seria sim, se estivéssemos a falar de um deputado em pleno exercício do seu mandato, mas este não é o caso. Sabemos que de acordo com a Constituição os "deputados exercem livremente o seu mandato, sendo-lhes garantidas condições adequadas ao eficaz exercício das suas funções, designadamente o indispensável contacto com os cidadãos eleitores, e à sua informação regular". No entanto, só haveria legitimidade para tal interpretação se o próprio autor da norma interpretada, isto é, o órgão que detém competência para ab initio produzi-la, reconhecesse o ex-ministro como um deputado em exercício de funções, o que não é aplicado neste caso, pois a exoneração do cargo de ministro não devolveu automaticamente ao réu o estatuto de deputado... Assim, quando o Tribunal Constitucional entende que a actividade parlamentar do ex-ministro e deputado com mandato suspenso é inexistente, estamos a falar de um cidadão comum que merecerá da justiça o mesmo tratamento dado a todo e qualquer cidadão que esteja na mesma condição."

Esperamos que esta contribuição, que agradecemos, sirva para dissipar as dúvidas existentes e para que se deixe prosseguir, com a ponderação e tranquilidade indispensáveis, o trabalho do Tribunal, soberano e independente, para que possa ser feita justiça. ¦