E deixou marcas profundas, deitando por terra o sonho antigo de, ainda que por uma via capitalista de desenvolvimento, pudéssemos conciliar, dadas as nossas especificidades, o crescimento económico, o aumento da riqueza material nacional produzida, o reforço da soberania nacional e uma redução sustentada das graves desigualdades sociais.

Acabou por levar à criação do que Guy Rocher chama de "relações ambíguas com o poder político". Estavam demasiado próximos dele, integravam-no até, e, ao mesmo tempo, "temiam a sua intervanção mas procuravam os seus favores. Esta ambiguidade reflectiu-se na sua ideologia, que é uma mistura de conservadorismo e de liberalismo".

As transformações em curso, que coincidem também com uma mudança geracional, provocam, naturalmente, em qualquer contexto e desde que o mundo é mundo, choques e contradições inevitáveis.

Os "mais-velhos" e os seus fiéis servidores, que foram ganhando algumas das sobras do banquete, fazem os possíveis por manter o seu estatuto e com ele os seus privilégios; os mais novos, a braços com uma crise nacional sem precedentes, oscilam entre a necessidade de mudanças radicais no comportamento das elites e a punição exemplar de alguns dos seus integrantes, sem que tal conduza a contradições insanáveis e que levem o país a pagar, mais uma vez, a conta gigantesca que sobra dos vícios e más-práticas que foram sendo acumulados ao longo de vinte anos, transmitidos que foram aos descendentes dos "mais-velhos", esquecidos de que a República de Angola não era, afinal, nem sua propriedade nem um legado familiar.

Não nos surpreenderam, por isso, algumas das reacções ao discurso do Presidente da República na União Europeia. E só poderia surpreender, na perspectiva crítica com que o demonstraram, os que, de alguma forma, foram beneficiando, directa ou indirectamente do anterior estado de coisas, que acabou por nos levar quase à condição de um estado-pária, desrespeitado, nas posições mais humilhantes e degradantes nas instituições que estudam os índices de corrupção, de mau ambiente de negócios, de nepotismo, de abuso da autoridade, etc., etc.

Olhando para o mundo em que vivemos - sem nunca perder de vista que não estamos a lidar com "anjos" nem com estadistas que se preocupem minimamente com Angola, com o seu povo - a única forma de recuperar alguma credibilidade e de voltar a colocar o mapa de Angola no circuito de países considerados propícios ao investimento, era utilizar o discurso político que o Chefe de Estado utilizou.

Se o problema fosse não "abanar" com alguns dos integrantes da elite de que falámos anteriormente, eles próprios deviam ter pensado nisso, antes de actuarem da forma lesiva como actuaram em relação a todos nós. Se o problema fosse querer sossegar quem conduziu o país para a beira do abismo, os que, de alguma forma, contribuiram para chegarmos ao ponto a que chegámos deviam ter previsto tudo isso. Para quem sempre defendeu que, a médio e longo-prazos, quaisquer alterações da política interna angolana teriam obrigatoriamente de passar pela regeneração do poder político e partidário nacional e não por pressões vindas do exterior, o que todos abominamos, João Lourenço não tinha outra saída.

Já que, por alguns anos ainda, Angola estará "obrigada" a integrar esse circuito da definição das grandes políticas nacionais, procurando recuperar, pela via capitalista, o trilho de algum desenvolvimento económico, que o faça na justa medida em que possamos apresentar uma cara lavada, as contas em dia, o reforço possível de uma classe empresarial angolana, que terá de se habituar a jogar com as cartas iguais para todos, sem ligações suspeitas nem sujas aos detentores do poder político. Mesmo sabendo o que valem a grande maioria dos políticos da União Europeia e dos EUA. É a lógica irreversível do capitalismo. E só depois disso, poderemos sonhar em ressuscitar as utopias de muitas gerações, sem idade.