E hoje, porque vivenciamos um ambiente novo, de esforço e empenho para a mudança de atitudes e responsabilização, para o melhor nas nossas vidas enquanto cidadãos pensantes e legítimos contribuintes, importa deixarmos de estar calados perante tanta irregularidade e até ilegalidade. Devemos, sim, colocar a «mão na ferida», mostrar de forma objectiva e clara, desmascarando alguns dos males mais prejudiciais às práticas, legalidade e legitimidade dos processos de renovação de mandatos dos órgãos sociais no nosso sistema desportivo, trazendo a lume a inverdade, a falsidade e a fraude que nos últimos tempos têm sido sistematicamente praticadas por muitos agentes do desporto, aspirantes a cargos de liderança.

Esta nossa abordagem terá cariz meramente técnico e regulamentar. Não procederemos a nenhuma avaliação subjectiva e de mérito de alguma situação concreta, iremos focar-nos mais na avaliação de quem elege e a sua legitimidade, do que de quem é eleito.

Afinal, quem pode votar e eleger? O que lhe atribui legitimidade de o fazer?

Todo o desporto nacional é regulado dentro do espírito e letra da Lei 05/2014 e 06/2014, Lei do Desporto e Lei das Associações Desportivas, respectivamente, e subsidiariamente pelos Estatutos das Associações Desportivas (que devem ser conforme a Lei), Estatutos e Regras das Federações Mundiais e do Comité Olímpico Internacional.

Antes de mais, importa clarificar que, para qualquer associação desportiva, a responsabilidade, o reconhecimento e o pressuposto primário da sua existência são a realização da actividade da prática desportiva de competição de rendimento, umas com a responsabilidade de organização e estruturação de competições (federações nacionais e associações provinciais), e outras (clubes) a constituição das equipas que irão alimentar o sistema de competições, estruturado pelas associações provinciais e federações nacionais, das quais devem os clubes ser membros de pleno direito, só e apenas se exercerem a prática daquela modalidade específica (não pode o clube ser membro da Federação de Judo quando só tem atletismo, futebol e andebol. Deverá, sim, ser membro destas federações, das modalidades que pratica).

A filiação a uma associação provincial ou federação resultará de um procedimento definido nos seus estatutos que, em regra, acontece por uma inscrição e quotização anual e pela necessária inscrição no cadastro da federação nacional dos seus atletas, treinadores e demais integrantes das suas equipas, habilitando-se, desta forma, a participar nas competições oficiais, respeitando as regras impostas pela federação mundial correspondente.

Pelo que resulta o seguinte, só se pode considerar uma competição oficial quando toda a sua estruturação e desenvolvimento acontecem respeitando as regras do jogo e com atletas inscritos nas federações nacionais nos escalões e categorias correspondentes (Cf. Art.º 3.º,4.º e 5.º da Lei 06/14).

Recordo aos mais «velhinhos» como nós, que fizeram desporto nos 80 e 90 do século passado, que se lembram claramente do orgulho que era, dentre os mais talentosos, chegar ao bairro e dizer: "JÁ SOU FEDERADO". Para os mais novos, a expressão quer dizer que o atleta deixou a prática informal e integrou a formal do desporto que pratica, passando a ser um atleta oficial, habilitando-se a participar em competições oficiais.

Estas são as responsabilidades primárias das associações desportivas, com as diferenças acima apresentadas. Logo, não devem ser confundidas com a sua responsabilidade social de ajudar a promover a actividade da sua disciplina desportiva, de massas, corporativa e/ou comunitária. Estas actividades são secundárias e não obrigatórias, não geram competições oficiais, devem ser desempenhadas pelos grupos de recreação desportiva, entendimento expresso nos Art.º"s 55.º e 56.º da Lei 06/14.

Do acima exposto, e sendo entendimento claro da Legislação Desportiva em vigor, resulta que só podem ser consideradas associações desportivas em pleno gozo e exercício dos seus direitos as que estejam em desempenho e cumprimento das suas atribuições, ou seja, - que os clubes tenham atletas e equipas inscritas oficialmente no cadastro das federações correspondentes; - que as associações provinciais organizem regularmente as competições que são da sua responsabilidade. Por outro lado, a Lei até menciona que "esta competição deve acontecer com pelo menos três clubes" (Cf. Art.º 57.º da Lei 06/14).

Que actividade poderá desenvolver uma associação provincial que só tem um ou dois clubes?

Nestes casos, a responsabilidade de gerir este um ou dois clubes é remetida para o Departamento Ministerial Provincial dos Desportos Colectivos. Mas por que razão perdemos tanto tempo a falar de competições, inscrições, responsabilidade e actividade das associações desportivas, se o assunto são eleições?

Precisamente por isso, porque a grande fraude que se vive ainda no nosso desporto é o facto de que grande parte da população votante da maior parte das Associações Províncias e Federações Nacionais não tem actividade. São clubes que não estão legalmente constituídos, não têm atletas nem equipas inscritas nas federações nacionais. Associações Provinciais que não têm filiados, equipas e atletas validamente inscritos, e que realizam torneios corporativos, e ou escolares, intitulando-os de campeonatos provinciais, quando são verdadeiros torneios de bairro sem inscrições nem cumprimento estruturante das regras de organização de competições das modalidades.

Daí a importância do que acima foi referenciado, pois aqui reside o problema: "Clubes" há que, para além de não terem estatutos, órgãos sociais reconhecidos pelos mecanismos legais do Ministério da Juventude e Desportos, não têm equipas nem atletas inscritos na modalidade; "Associações Provinciais" há que não têm clubes inscritos e que, por vezes, tendo um ou dois, não têm atletas nem equipas inscritas na correspondente federação, mas surgem nos momentos de renovação de mandatos, arrogando-se a condição de votante. Desculpem-nos, mas não têm legitimidade de o fazer. E hoje, chegamos até ao ridículo de existirem federações nacionais sem clubes nem associações provinciais como membros. Então, como foram constituídas e como existem se a Lei 06/14 nos Art.º"s 6.º a 10.º, 28.º, 44.º, 51.º, 57.º, 62.º é bem clara. Os clubes são constituídos por pelo menos 20 pessoas singulares, as associações provinciais por três clubes e as federações por todos os clubes e associações provinciais que pratiquem a sua modalidade.

Podemos concluir e tomar nota para a correcção imediata que só as associações que estejam a cumprir regularmente com as suas atribuições podem e devem, democraticamente, participar dos processos de renovação de mandatos das associações a que pertencem. Da mesma forma que nos clubes, só os sócios que tenham cumprido durante o mandato que termina com as suas obrigações estatutárias poderão eleger os líderes do seu clube do coração.

*Advogado e professor universitário