Enquanto a equipa da AIEA, chefiada pelo seu director-geral, Rafael Grossi, se desloca para Enerhodar a partir da capital ucraniana, depois de um longo processo negocial que acabou com Moscovo a aceitar a deslocação dos inspectores atómicos, as coisas ficaram feias quando as estradas escolhidas pela missão para chegar à central nuclear começaram a ser bombardeadas.

Quem está a bombardear os caminhos da equipa de Grossi? Os ucranianos, dizem os russos, os russos, garantem os ucranianos. Ou seja, repete-se o "filme" que está a ser visto há semanas, com os homens de Kiev a acusaram a Rússia de estar a lançar roquetes sobre as instalações atómicas que já ocupam há quase seis meses, num quase inexplicável ataque auto-infligido, e com as forças do Kremlin a apontarem o dedo aos ucranianos de quererem criar um grave desastre nuclear culpando os russos.

A única coisa que se sabe, no meio deste turbilhão de desinformação, é que a partir do momento em que a equipa da AIEA se instalar na infra-estrutura nuclear de Zaporijia, deixará de ser possível não saber quem lançar roquetes sobre esta infra-estrutura, que, além dos seis reactores que produzem 6 MW de electricidade - a central de Chernobil, onde ocorreu o maior incidente nuclear deste tipo de sempre, em 1986, produzia 4 MW -, serve ainda de depósito de toneladas de material radioactivo que serve de combustível e ainda sarcófagos que armazenam os resíduos da produção, igualmente altamente radiactivos.

A chegada de Grossi e o seu "team" à Central Nuclear de Zaporijia está prevista, apesar dos entraves gerados pelos ataques aos seus caminhos, percorridos por uma extensa caravana de viaturas das Nações Unidas, para as próximas horas.

O que dizem os analistas sobre este modo de operar das partes em conflito, com estes ataques à AIEA e, nas últimas semanas, à própria central, é que, estando esta unidade estratégica nas mãos dos russos mas a funcionar com pessoal ucraniano e em permanente fornecimento de energia eléctrica para a rede nacional ucraniana, dificilmente é explicável que sejam os russos a auto-infligir-se ataques com morteiros e roquetes.

Por outro lado, há igualmente, entre os especialistas militares, quem entenda que sim, que é possível serem os russos, numa operação de "falsa bandeira", que consiste em gerar situações imputando responsabilidade ao opositor, para justificar a presença de equipamento militar na central, especialmente artilharia, usada para atacar posições ucranianas, protegendo-se dos contra-ataques sob o chapéu do perigo de um desastre nuclear provocado por esses contra-ataques ucranianos em território ucraniano, que fariam, seguramente, milhares de mortos numa geografia alargada a centenas de quilómetros em redor.

Grossi preocupado

Rafael Grossi admitiu aos jornalistas que o acompanham, esta quinta-feira a partir da cidade de Zaporijia, a cerca de 120 quilómetros da central nuclear, que a situação é séria e que o risco existe, mas não poderiam desistir depois de tanto caminho feito.

"Depois de tanto caminho, de termos chegado tão longe, não é agora que vamos parar", disse, repetindo que esta missão tem como objectivo imediato avaliar o risco em todas as suas dimensões de um desastre nuclear.

Isto, apesar de os técnicos russos no local estarem a repetir diariamente que todas as medições de radioactividade são normais.

O ex-presidente da Câmara da cidade de Zaporijia, Dmitro Orlov, tem sido dos mais incansáveis apontadores do dedo acusador aos russos, repetindo denúncias de ataques russos contra as áreas ocupadas pelos... russos.

O exército russo acusa, por sua vez, as tropas ucranianas de terem enviado uma equipa de "sabotadores" para as proximidades da central nuclear no dia visita da missão da AIEA.

Já Andri Yermak, chefe de gabinete do presidente ucraniano, Volodymyr, Zelensky, acusou Moscovo de estar a tentar "destruir" a missão da AIEA agindo como "um estado terrorista".

Já os russos, através do Ministério da Defesa, indicaram que estão a atacar, com recurso a helicópteros, um "grupo ucraniano de sabotagem" que está a actuar junto à central de Zaporijia

Ao início da tarde de quarta-feira, uma coluna com cerca de 20 carros, metade destes identificados com as siglas da ONU, e uma ambulância, chegou à localidade de Zaporijia, localizada a cerca de 50 quilómetros em linha recta da central nuclear.

A missão da agência, constituída por 14 pessoas, foi recebida pelo Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky no dia anterior em Kiev, tendo deixado a capital na manhã de quarta-feira.

Missão permanente?

A Rússia admitiu permitir que a AIEA estabeleça uma representação permanente na central nuclear de Zaporijia, acedendo às exigências de Kiev, embora estas concessões sejam vistas como fazendo pate do "circo" mediático em torno deste assunto radioactivo também na frente comunicacional.

"Vamos ver os resultados iniciais, mas, naturalmente, não descartamos essa possibilidade. Estamos a analisar o assunto", disse Andrei Rudenko, vice-ministro dos Negócios Estrangeiros russo.

O director-geral desta agência nuclear da ONU, Rafael Grossi, confirmou na quarta-feira, antes de partir de Kiev em direcção a Zaporijia, que a missão tenciona passar vários dias na central e que a organização também pretende criar uma representação permanente nas instalações.

Entretanto, a contra-ofensiva ucraniana...

Parece estar a falhar a prometida e previamente anunciada contra-ofensiva das forças ucranianas na região de Kherson, uma das áreas estratégicas do sul da Ucrânia ocupadas pelos russos desde Março/Abril, que dá acesso à costa do Mar Negro, situada imediatamente a norte da Península da Crimeia, que Moscovo anexou, depois de um referendo, em 2014.

Com esta contra-ofensiva, com a qual Kiev procura recuperar uma geografia estratégica e alimentar o ímpeto da guerra antes da chegada do "General Inverno" que vai congelar este conflito por meses, até à próxima Primavera.

Mas, segundo a informação mais credível, apenas das baixas importantes de um lado e do outro, os ucranianos estão a ser travados no seu avanço, com milhares de mortos pelo caminho, o que está a forçar Kiev a estancar o passo, depois de terem conquistado algumas aldeias desertas e sem importância estratégica nesta operação de recuperação de território.

Enquanto de Kiev, o Ministério da Defesa avança que o ímpeto se mantém, com sucessos no terreno, da parte dos russos, a versão é contrária, a ponto de o Ministério russo ter anunciado na quarta-feira que em dois dias, os ucranianos perderam 1.700 homens na frente de Nikolayev-Kryvoi, onde caíram ainda, diz Moscovo, quatro aviões de guerra SU-25 e MIG-29, vários helicópteros MI-8, 63 blindados e dezenas de viaturas de transporte e peças de artilharia.

Do lado ucraniano, a versão conta que neste avanço de recaptura de território, o sucesso mede-se pelos locais onde se ergue de novo a bandeira azul e amarela, o que, segundo dados de Kiev, se resume a cerca de uma dezena de aldeias na direcção norte-sul, na província de Kherson.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.