A Arábia Saudita, o maior exportador global de petróleo e um dos principais aliados dos Estados Unidos no Médio Oriente, está de novo debaixo de fogo da CIA, a principal agência de "intelligentsia" externa dos EUA, que, num relatório agora divulgado, volta a abrir uma ferida extensa que desde 2018 mantém a ameaça de se tornar numa infecção incontrolada na mais melindrosa região do mundo devido a questões de tensão local - Arábia Saudita/Irão/Israel - com o envolvimento directo da Casa Real na morte do jornalista crítico do regime dos Saud, no consulado de Riade em Istambul, na Turquia.

Com o caso em plena efervescência, o anterior Presidente dos EUA, Donald Trump, apesar de já então existirem fortes indícios, noutro relatório da "secreta" americana, optou por colocar os interesses de Washington à frente da justiça que a família do jornalista do The Washington Post exige deste então, afirmando-se satisfeito com uma decisão dos tribunais de Riade que acusaram elementos de terceira linha pela preparação e execução do plano para a morte de Jamal Khashoggi.

Mohammed bin Salman "validou" o plano para o assassinato de Jamal Khashoggi, diz a CIA no documento que acaba de ser revelado por tersido desclassificado da sua condição de top secret, onde se lê, segundo as agências, que o príncipe herdeiro considerava o jornalista como uma ameaça para o Reino saudita e, por isso, "apoiou o recurso à medidas extremas" para se livrarem deste fardo.

Com este passo, a Administração Biden está agora mais pressionada que nenhuma outra para implicar oficialmente o herdeiro da coroa saudita num crime desta natureza, o que teria repercussões impossíveis de antecipar nas relações entre os dois países, com o acrescento de poder ser o início do desmoronamento da actual malha de forças no Médio Oriente, onde, por exemplo, os EUA acabam de bombardear posições de milícias pró-Irão na Síria, o que não pode deixar de ser visto como uma forma de atenuar as chamas que o relatório da CIA iria gerar, garantidamente.

Esta conclusão oficializa uma posição da CIA que já era esperada, por se ter tido, em 2018, conhecimento do seu conteúdo mas sem a visualização do documento sigiloso que poderá gerar um novo mapa de alianças no Médio Oriente, sendo que, para atenuar os seus efeitos, não está colocada de parte a possibilidade de deflagração de conflitos localizados envolvendo forças próximas do Irão.

Para já, aguarda-se que tipo de medidas vai Washington tomar, embora seja de esperar alguma contenção que pode sair do controlo da Administração Biden devido ao facto de as duas câmaras do Congresso, Representantes e Senado, estarem agora controladas pelos Democratas, que sempre foram mais críticos de Riade que os Republicanos de Trump.

Versão atrapalhada de Riade

O saudita Jamal Kashoggi, 59 anos, residente nos Estados Unidos e cronista do jornal The Washington Post, foi assassinado no consulado do seu país em Istambul (Turquia) por agentes sauditas.

O Senado norte-americano, que teve acesso às conclusões dos serviços de informações, considerou na altura que o príncipe herdeiro era "responsável" pelo assassínio.

Riade inicialmente negou qualquer responsabilidade, mas mais tarde disse que o jornalista foi morto acidentalmente por agentes que tentavam extraditá-lo.

A versão oficial da Arábia Saudita é que esses agentes, ligados a Mohammed bin Salman, agiram por conta própria e que o príncipe não esteve envolvido.

Oito pessoas foram condenadas na Arábia Saudita pela morte de Khashoggi, cinco das quais à pena capital. Mais tarde estas sentenças foram comutadas para 20 anos de prisão.

Reacção de Washington

Os Estados Unidos, anunciaram hoje restrição à atribuição de vistos a 76 cidadãos da Arábia Saudita acusados de "ameaçar dissidentes no estrangeiro", nomeadamente o jornalista saudita Jamal Khashoggi, assassinado em Outubro de 2018 na Turquia

Segundo o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, as sanções inscrevem-se no quadro de uma nova regra, baptizada pelo Departamento de Estado como a "Lei Khashoggi", que visa proibir a entrada nos Estados Unidos a qualquer pessoa acusada de atacar, em nome das autoridades do seu país, dissidentes ou jornalistas no estrangeiro.

As medidas foram anunciadas, avança a Lusa, na sequência da publicação do relatório da inteligência dos EUA, que acusa o príncipe saudita Mohammed bin Salman de ter "validado" o assassínio de Khashoggi.

A identidade e as funções de todos os sauditas visados pela "primeira série de medidas" não foram reveladas, mas sabe-se que um antigo alto funcionário e uma unidade especial próxima do príncipe herdeiro são alvo de sanções económicas.

Trata-se de uma unidade de intervenção especial e do antigo "número dois" dos serviços secretos sauditas, Ahmed al-Assiri, "próximos" de Mohamed bin Salman, pelo papel desempenhado no assassínio de Khashoggi.

O general al-Assiri, um militar influente, foi indiciado, mas absolvido pela justiça saudita.

A justiça turca, por seu lado, acusa-o de ser um dos comanditários do assassínio de Khashoggi.

"Jamal Khashoggi pagou com a vida por expressar as suas opiniões", afirmou Blinken, explicando que pretende "punir" os Estados que ameacem ou ataquem jornalistas ou alegados opositores fora das suas fronteiras "apenas porque exercem as suas liberdades fundamentais".

"Dissemos muito claramente que as ameaças e ataques extraterritoriais da Arábia Saudita contra ativistas, dissidentes e jornalistas devem acabar. Não serão tolerados pelos Estados Unidos", avisou Blinken.

pena capital. Mais tarde estas sentenças foram comutadas para 20 anos de prisão

Resposta Saudita

A Arábia Saudita rejeitou "totalmente" o relatório dos serviços de inteligência dos Estados Unidos, que imputa ao herdeiro Mohammed bin Salman de autorizar o homicídio do jornalista e crítico do regime Jamal Khashoggi, em 2018.

"O Governo da Arábia Saudita rejeita totalmente as falsas e nefastas conclusões contidas no relatório sobre a liderança do reino e não pode aceitá-las em nenhum caso", referiram as autoridades sauditas, em comunicado citado pela France-Presse (AFP) divulgado pela Lusa.

A nota acrescenta que o relatório produzido por Washington propaga "desinformação".

"É verdadeiramente lamentável que este relatório, com estas conclusões injustificadas e falsas, seja divulgado quando o reino denunciou claramente este crime hediondo e os seus líderes tomaram as medidas necessárias para garantir que tal tragédia nunca volte a acontecer", explicita ainda o comunicado do Governo saudita.