Foi já este ano, como o Novo Jornal tem acompanhado, o que pode ser revisto aqui e aqui, que o general Haftar esteve às portas de Trípoli quase a derrubar o Governo legítimo de Sarraj, mas a partir de Istambul, o Presidente turco, Recep Erdogan, resolveu, num gesto histórico, mudar as regras do jogo.

Erdogan obrigou o Parlamento a mudar as leis do seu país para que, além do envio de armas em abundância ao seu aliado líbio, o primeiro-ministro al Sarraj, também tropas turcas - um dos maiores exércitos e mais bem equipados do mundo - pudessem colocar as botas em África pela primeira vez. Um passo que mudou para sempre os destinos da antiga Pàtria de Muammar Khadaffi.

Porque até aí, com o apoio do Egipto e dos Emirados Árabes Unidos (EAU), o general rebelde Khalifa Haftar, à frente do ENL, parecia ter caminho livre para tomar o poder de assalto, tendo mesmo mantido durante dias a fio o aeroporto da capital líbia sob internso bombardeio com peças de artilharia estacionadas em áreas limítrofes de Trípoli, muito próximo do baluarte de Sarraj.

Agora, ao fim de intensos e desgastantes combates, o que não é uma novidade para o sacrificado povo líbio, habituado a conflitos sucessivos desde 2011, ano em que Muammar Khaddafi foi deposto, e sob a égide das Nações Unidas, quando esta organização comemora o seu 74º aniversário, as partes desavindas aceitam um cessar-fogo para que tenha início um processo negocial que visará o fim das hostilidades e, presumivelmente, que a Líbia regresse ao tempo da prosperidade e bem-estar que viveu durante os longos anos da ditadura do "coronel beduíno" graças às imensas reservas em hidrocarbonetos.

A enviada da ONU para a Líbia, Stephanie Williams, que acompanhou as negociações e pressionou as partes a assinarem o documento, frisou que o que está em cima da mesa é a imediata cessão das hostilidades e que todos os combatentes estrangeiros deixem o país.

"Este é um dia bom para a Líbia e para o seu povo porque representa uma oportunidade", depois das negociações que tiveram lugar em Genebra, Suíça, com chefes militares de ambos os lados, que assinaram um acordo que agrega todo o país, exigindo-se a saída dos combatentes estrangeiros para os próximos três meses.

A prioridade é agora conseguir condições para agregar todos os militares líbios num Exercito único e, com isso, como está implícito, a partilha de facto do poder... e dos seus recursos.

Mas essa pode ser mesmo uma imposição difícil de concretizar devido à evidente desconfiança de uns para os outros, especialmente quando o que está em causa são, não só as imensas reservas petrolíferas conhecidas em território líbio, como as recentes, e igualmente gigantes, reservas de gás natural encontradas em águas do Mediterrâneo pertencentes por direito à Líbia, que são desejadas pela Turquia mas também pelo Egipto, Itália...

Recorde-se que actualmente existem já provas concretas da presença, não só de elementos das forças armadas turcas, e dos mais de 4 mil mercenários que foram buscar à Síria, mas também mercenários russos, sudaneses, iémenitas, homens enviados pelos EAU de vários pontos do Médio Oriente,, mercenários contratados pelo Egipto...

Alias, as tréguas conseguidas ao longo dos anos neste país do Norte de África, em pleno Saara, mergulhado em guerras civis umas atrás das outras desde 2011, são tão sólidas como o fumo fustigado pelo vento do deserto, e isso mesmo disse aos lados em confronto Stephanie Williams, que, apesar das soluções políticas falhadas sucessivamente, mostrou-se convicta de que, desta feita, "os cínicos não vão levar a sua vontade avante".

Pelo menos é isso que a diplomata norte-americana escolhida por António Guterres, o Secretário-Geral da ONU, para esta espinhosa missão espera suceder, apesar de a mesma admita que historicamente as probabilidades estejam contra si.

Para já, as notícias que chegam de Istambul não são boas, com o Presidente Erdogan, que não admite deixar de apoiar o Governo de Trípoli, a dizer, sem rebuço, que não acredita que este cessar-fogo tenha pernas para andar.

Desde logo porque só está a ser assinado com o general Haftar claramente encostado às cordas quando procurava o assalto final às muralhas de Trípoli, o que significa que está a negociar sob a pressão da iminente derrota militar.

As linhas da frente estão estabilizadas nas proximidades da cidade costeira de Sirte, o que, para quem olha para o mapa líbio, está geograficamente situada a meio caminho entre Trípoli, centro nevrálgico do poder de Sarraj, e a cidade de Benghazi, onde está o quartel-general de Khalifa Haftar, como que dividindo simbolicamente o país a meio, embora estas cidades estejam localizadas na costa norte, geograficamente escassa quando comparada com o imenso território desértico do antigo feudo de Khadaffi, o coronel beduino, como se auto-intitulava.

Outra razão pela qual este acordo tende a ser fumo em dissipação é que a Líbia é hoje um paiol atulhado em milhões e milhões de toneladas de armamento de todo o tipo que, apesar do embargo das Nações Unidas, tanto a Turquia, como a Rússia, o Egipto e os EAU enviaram à socapa para ambas as partes em conflito.

Apesar das desconfianças claras e evidentes, do registo histórico pouco abonatório a uma saída definitiva do caos líbio, as partes vão sentar-se à mesa das negociações já na próxima semana, na Tunísia, e então se saberá o rumo que será escolhido: a paz ou a guerra.

Mas, como admitem alguns analistas, tudo indica que estas tréguas tenham como objectivo único o reforço das posições, o reabastecimento das linhas da frente, a renovação do armamento e o refrescamento das tropas, para, depois, voltar a impor-se o troar dos canhões, porque as jazidas de petróleo e gás natural não fogem de onde estão e as vidas humanas que se perdem na Líbia não são, obviamente, a prioridade para turcos, russos, egípcios, emirados, italianos, franceses, norte-americanos...