Com o termo das invasões napoleónicas e a Revolução liberal de 1820 em Portugal, o Rei foi pressionado para regressar ao país, como regressou.

No Brasil ficou o filho, o futuro primeiro Rei deste novo país independente, D. Pedro I, registando-se para a História o chamado "grito do Ipiranga", quando disse- "Eu fico!"-, sendo a declaração da independência escrita por José Bonifácio, cientista português.

Da monarquia, então instalada, até à implantação ulterior da República, o portentoso país que é, na verdadeira aceção da palavra o Brasil, foi resultado de encontros de povos e culturas, particularmente os de língua portuguesa, com símbolos mundiais hoje de referência em múltiplos domínios, desde o desporto à cultura.

Desde logo na literatura, com Machado de Assis, descendente de africanos, com pai mulato e mãe portuguesa dos Açores, lavadeira, sem qualquer formação universitária e por muitos considerado o maior escritor de origem negra de todos os tempos, fundador da Academia Brasileira de Letras, de que foi primeiro presidente.

Podíamos multiplicar os exemplos, nomeadamente na música, com o samba a refletir esses encontros seculares de cultura, como sublinha o grande melómano brasileiro José Ramos Tinhorão, no seu livro "Os negros em Portugal, uma presença silenciosa".

Não admira, por isso, que Carmen Miranda, nascida na portuguesíssima vila de Marco de Canavezes, tivesse sido uma vedeta mundial no seu tempo, inclusive no cinema tendo o Carnava carioca como tema, assumindo-se também como brasdileira.

A independência do Brasil celebrou este ano a efeméride de cento e vinte e noventa e nove anos.

Infelizmente as notícias e reportagens que nos chegaram deste aniversário não nos falam da dimensão da cultura do país, da grandeza dos factos históricos que o marcaram e das incomensuráveis potencialidades que tem à escala global.

O Brasil é falado hoje infelizmente por más razões.

O que nos foi dado ver no dia da independência foi a imagem de um país dividido, em confronto com manifestações de apoiantes do Presidente da República, Jair Bolsonaro, mobilizados por este e do outro lado dos seus opositores.

A sucessiva queda de popularidade do Presidente em também sucessivas sondagens e a incoerência das declarações que fez contra a pandemia da COVID 19 conduziu-o a promover essas manifestações em seu apoio, sobretudo em Brasília e em São Paulo, com as referidas e inevitáveis contra manifestações.

Retomou afirmações autoritárias e populistas inaceitáveis de confronto que, do seu ponto de vista, o beneficiaram à data nas eleições de que saiu vencedor para o cargo para a mais alta magistratura do país e voltou agora a fazê-lo.

Essas declarações procuraram pôr em causa alguns juízes do Supremo Tribunal de Justiça, particularmente o Dr. Alexandre de Moraes, como se o tribunal, que é independente, fosse o responsável pela libertação de criminosos de delito comum, segundo declarações que produziu o que alimentou o apoio de uma parte dos elementos policiais.

Os polícias vêm-se em inúmeras situações confrontados com grupos marginais violentos, sendo deles as primeiras vítimas

Ao ouviram a cada passo as declarações por parte do Presidente reagem de forma epidérmica e não em seu apoio.

Estas insensatas declarações a par de exigência de que se ponha termo ao processo do impeachment que contra o Presidente da Republica se desenvolve refletem posturas populistas, de grande risco e com consequências que podem ser imprevisíveis

Elas são gasolina lançada no braseiro, tendo mesmo conduzido um responsável da polícia de S. Paulo a convocar os colegas para a manifestação de apoio ao Presidente, sustentando que apesar de comparecerem à paisana deviam ser portadores das suas armas.

O próprio Presidente compareceu em S. Paulo e discursou, sabendo que o Governador do Estado, João Dória, militante do PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro) é um potencial candidato à eleição presidencial no próximo ano contra si.

A manifestação a favor do Presidente em S. Paulo, a sua própria presença e o discurso que fez visou "matar dois coelhos com uma só cajadada", ameaçando os opositores através das manifestações por um lado e procurando por outro limitar João Dória a pretensões futuras à Presidência.

É uma opção muito perigosa a que está a ser seguida sobretudo com as eleições presidenciais a aproximarem-se sob este pano de fundo intencionalmente provocado com legitimas suspeições de que o Presidente está a ultrapassar a linha vermelha de respeito pelas liberdades fundamentais, do equilíbrio dos poderes e das funções de soberania.

Neste momento, para além da intenção de Bolsonaro em se recandidatar, não se vê que diminua os ataques contra o Supremo Tribunal Federal de Justiça, que também, como se disse o investiga.

Aproximando-se as eleições presidenciais, o ex-Presidente Lula da Silva assumiu que poderá ser candidato a Presidente opondo-se-lhe, mas ainda não é totalmente claro que o confronto final seja entre os dois.

Admite-se que um candidato do centro com apoio transversal dos eleitores de centro direita, do centro esquerda e da esquerda pudesse ter melhores condições de sair vitorioso contra Bolsonaro.

Não sendo também ainda claro quem poderá ser esse candidato e se surgirá, eventualmente João Dória, com ou sem apoio de Ciro Gomes do PDT (Partido Democrático Trabalhista), criado por Leonel Brizola e com grande influência no Nordeste ou até o próprio Lula da Silva, com alargamento ao centro e centro direita direita dada a situação difícil do país, inclusive do ponto de vista económico contando-se neste caso com a experiência de Lula e a sua habilidade politica.

O importante para toda a oposição a Bolsonaro é derrota-lo.

O ex-Ministro da Defesa de Lula e também da sua sucessora, Dilma Rouseff, o ex-juiz Nelson Joblin, também ele do PSDB, personalidade com enorme credibilidade e reconhecimento do país, já declarou não desejar ser candidato e esta poderia ser uma solução com grande possibilidade de vitória a partir do centro mas para já excluída.

Neste quadro as Forças Armadas têm dado provas reais de equidistância, o que é muito positivo.

Entretanto Jair Bolsonaro continuará seguramente a reforçar contundentes declarações contra o Supremo Tribunal Federal de Justiça e a atiçar os seus apoiantes, convicto que serão estes os meios mais adequados para inverter a queda que em sucessivas sondagens começa a ter.

Vamos ver o que dizem as próximas sondagens, parecendo que o mundo empresarial que pesa, começa a dar sinais que o atual Presidente tem mais inconvenientes que vantagens a continuar no poder.

Como é sabido, o ex-Presidente Trump não teve os resultados que esperava quando também atiçou os seus apoiantes contra o Capitólio, como todo o mundo viu mas Bolsonaro parece que não teve nem tem esta leitura.

Estou convicto que o Brasil reencontrará, com a pujante cultura universalista e tolerante que tem, refletida com breves referências no inicio deste artigo, o caminho para o reforço e aprofundamento da democracia nas próximas eleições se as Forças Armadas se mantiverem equidistantes e Bolsonaro não subir ainda mais a parada populista.

Esse aprofundamento será muito útil para o mundo e a retoma de proximidade e entreajuda com os povos e países de língua portuguesa será também muito benéfica para a CPLP uma vez que Angola presidirá nos próximos dois anos à instituição e o Secretário-geral da ONU, que é uma personalidade da língua portuguesa, tendo sido recentemente reeleito com a unanimidade dos votos dos membros do Conselho de Segurança, tem a dimensão humanista necessária à reconstrução do futuro.

Decididamente Bolsonaro devia aprender com as razões do resultado da derrota de Trump mas parece mesmo que não aprendeu o que todo o mundo viu na manifestação defronte do Capitólio.

(Secretário-geral da UCCLA)