O livro de Actos dos Apóstolos na Bíblia menciona um convertido etíope que levou o Cristianismo para a rainha etíope. A tradição cristã ortodoxa etíope assumiu características distintas pelo seu contacto com a tradição cristã Cóptica herdada de Alexandria. Surge, assim, a Igreja Ortodoxa Etíope "Tewahedo". Parte da tradição oriental ortodoxa e a sua importância são singulares. Se hoje conhecemos a literatura gnóstica, devemos parcialmente este legado aos etíopes e à igreja que preservou esse material em Geez (Língua litúrgica da igreja Tewahedo), e o símbolo dessa tradição está na cidade santa de Aksum e a "arca da aliança".

Durante a Idade Média, a Etiópia foi conhecida como a terra de "Prestes João", o rei cristão "mítico" que iria ajudar o Ocidente contra os adversários do Ocidente e na época da expansão europeia, a revelação de que os etíopes eram ortodoxos não foi bem recebida por muitas potências imperais. A solidez do Estado etíope impediu uma colonização como no resto do continente na famosa "Scramble for Africa", principalmente depois da Conferência de Berlim, a derrota Italiana na batalha de Adwa, em 1896, é um testamento dessa resistência etíope, que só foi quebrada em 1936.

Os tempos são diferentes, e o recente eclodir da guerra na Etiópia infelizmente tem passado despercebido pelo público em geral e pela imprensa ocidental, em especial. É um conflito inexistente para muitos. Não porque não exista, mas porque é mais um conflito dos vários que a Etiópia teve desde a queda de Hailé Selassie e depois da brutalidade da ditadura dos Derg. O conflito Etíope é brutal e já dizimou mais de 100 mil pessoas, de acordo com o Washington Post, desde 2020, e é o pior conflito em curso, com mais vítimas mortais do que a Ucrânia e com casos atestados de limpeza étnica e genocídio.

É um conflito que começou com a decisão do primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, em invadir a região Tigray, curiosamente galardoado por receber o Nobel da Paz depois do acordo com a Eritreia. O conflito envolve também esse país e inclui uma componente étnica, afectando o frágil federalismo que foi adoptado depois da queda da junta militar dos Derg. O silêncio internacional e no continente africano perante ele, para mim, não constitui surpresa. Apesar das declarações de alguns políticos e representantes de organizações internacionais, inclusive do secretário-geral das Nações Unidas, o conflito e o sofrimento na Etiópia têm vindo a ser selectivamente ignorado, contrariamente ao que ocorreu com a Ucrânia.

Muitos afirmaram que não deveria preocupar-me com a Etiópia porque não sou etíope. A refutação a essa afirmação está na indiferença com que o mundo olhou para o conflito Angolano, e essa resposta deve ser a concretização da regra de ouro, principalmente para aqueles que se consideram Pan-africanos e acreditam na filosofia Ubuntu.

Ainda me recordo da música "We are the World", escrita por Lionel Richie e Michael Jackson em 1985 para solidariedade e apoio às vítimas da fome na Etiópia, num contexto de guerra fria e múltiplos conflitos, entre os quais o conflito angolano. Essa solidariedade parece ter terminado numa sociedade global obcecada pelas redes sociais e falsas narrativas vendidas muitas vezes pela imprensa, em geral.

É na Etiópia onde o sonho africano vai ser concretizado ou vai falhar. Muita gente vê na África do Sul, Egipto ou na Nigéria o coração ou o motor do continente. Eu vejo na Etiópia a luz de África para o mundo, não apenas porque é em Addis Abebba onde está a sede da União Africana, mas porque também é na Etiópia onde está a nossa Sião, a nossa "Jerusalém", e a indiferença a esse sofrimento é a indiferença perante o rosto do outro, humano como nós e ele é também africano como nós.

*Docente universitário