Estava ali o poder popular que desafiou e venceu o populismo. Ali esteve a expressão do desemprego, da pobreza e de uma miséria. Foi o explodir de uma "bomba atómica" que há muito anda fragmentada e que actua de forma isolada. É que, desta vez, todas as franjas dos taxistas, motoqueiros, cobradores, lotadores, zungueiras, peixeiras, quintandeiras e "kunangas" estiveram presentes para manifestar a sua indignação pela actual situação política, económica e social. Até ao passado dia 22, a ideia que se tinha era de que o pessoal ligado ao Nagrelha eram apenas os marginalizados, os iletrados e arruaceiros, mas o que se viu é que ele representava muito mais do que isso. Ele era este símbolo da revolta, algumas vezes um anti-sistema (que o desafiava pelo seu estilo de vida, ousadia e irreverência), outras, um produto deste mesmo sistema, que, mesmo em período de saúde frágil e na morte, procurou aproveitar-se do seu carisma e influência para o aproveitamento político. Mau! Mau este aproveitamento da fragilidade e dor alheio por parte dos políticos e também mau o vandalismo, desordem e anarquia demonstrada pela população para manifestar o seu descontentamento.

Mais do que a carência alimentar ou financeira, o que se viu aí foi também carência de afectos, carência de perspectiva de vida, de falta de rumo e ausência de futuro. Fazem-nos falta certas manifestações de afecto, preocupa-nos a falta de capacidade de solidariedade, de preocupação e atenção com o outro. Quem governa, quem lidera, quem decide que tinha de transmitir o mínimo de confiança já perdeu também a alma. Vimos aí um poder popular que venceu o populismo e que estava avido de mostrar a sua revolta. Um poder popular com necessidade de se afirmar, que, mesmo não sendo uma manifestação organizada contra o Executivo, mas que aproveitou a morte de Nagrelha para se fazer ouvir, de se manifestar, de mostrar o seu descontentamento pela forma mais violenta e vil. Não havia necessidade de ser assim.

Seria tudo mais fácil se a Policia Nacional e outras forças de segurança tivessem feito uma rigorosa, prudente e adequada avaliação da situação. Houve pessoas mortas, polícias e cidadãos gravemente feridos, tudo isso podia ser evitado, mas o mal já está feito, Nagrelha enterrado e a culpa certamente irá morrer solteira. O que esteve ali foi um povo que mostrou que não se governa e não se deixa governar. Um povo que sabe que a soberania reside nele e que também tem sede e poder, tudo porque há muito que o poder decidiu governar com e para o populismo. Foi a Angola periférica que se mostrou, que decidiu ter voz. A Angola periférica, hostilizada, desvalorizada e humilhada, que aproveitou a "morte do artista" para sair do areal e tomar o asfalto. A Angola periférica órfã de afectos e de compreensão. Faz-nos falta uma cultura de afectos, de olhar e compreensão do outro. Faz-nos falta perceber que há um novo poder popular e que não vai esperar cada cinco anos para se manifestar nas urnas. Também faz falta fazer-lhes perceber que o poder não pode e nem deve cair nas ruas. Faz falta fazer-lhes perceber que eles também contam e que fazem falta.