Quem se detiver a lê-la e a fazer uma viagem de regresso ao passado, rapidamente verificará que muito antes dos Acordos de Nova Iork já Angola havia estabelecido "pontes" com o regime do apartheid instalado em Pretória e que, muito antes também dos Acordos de Bicesse, a partir de Berlim, Mendes de Carvalho, à época embaixador na antiga RDA, já havia igualmente feito "pontes" com emissários de Jonas Savimbi - então oposicionista encarniçado do MPLA.

Quem se detiver a avaliar, de forma desapaixonada, as fissuras que se abriram no seio do MPLA, facilmente concluirá ainda que o regresso ao país na terça-feira passada de José Eduardo dos Santos pode abrir espaço ao lançamento de "pontes" no seu seio que ajudem a sarar velhas feridas e a reforçar o cimento da sua unidade interna para enfrentar, com outra solidez política, os desafios eleitorais que estão à porta.

Deixando órfãos alguns sectores do MPLA que vivem embriagados por um certo fanatismo doentio, o Presidente, ao mandar fazer a reavaliação crítica de alguns dispositivos da Lei Eleitoral, parece ter percebido que "a política de pontes" em momentos cruciais da disputa democrática é muito mais eficaz do que o "radicalismo caviar" de certas milícias partidárias.

Ao fazê-lo, o Presidente parece pretender dar voz à voz daqueles que, em surdina dentro do MPLA e mais abertamente na oposição e na sociedade civil, nunca deixaram de manifestar a sua apreensão em relação a alguns dos seus pontos mais controversos.

Ao fazê-lo, parece pretender provar a superioridade política do espírito de abertura no debate público através do estabelecimento das "pontes" necessárias a uma discussão menos impositiva e mais consensual em torno de uma das leis mais importantes do nosso processo democrático.

Se a sua iniciativa em devolver a Lei Eleitoral ao Parlamento lança uma nuvem de esperança na busca da transparência democrática e da credibilização da discussão dos pontos em divergência, já o activismo partidário corporizado pelo cabeça de cartaz do MPLA em Luanda - Bento Bento - ao assentar no patético lançamento de fogo de artificio para "comemorar" a redução, pela via administrativa, dos preços da cesta básica, representa um verdadeiro insulto à inteligência daqueles que no interior do seu partido recusam confundir liquidez propagandística com lucidez política.

Esse tipo de insulto representa um verdadeiro atentado à sanidade política do próprio MPLA e, pior do que isso, não só alimenta a chacota ao nível das chancelarias ocidentais acreditadas em Luanda, como leva os cidadãos a não levarem a sério uma boa parte dos seus dirigentes.

Ora, quando isto acontece e, em simultâneo, quando, alimentados por um triunfalismo estéril, assistimos ao desvario de alguns militantes da UNITA redundar em agressões a jornalistas, então temos de concluir que o "Síndrome de Estocolmo" tomou definitivamente conta da mediocridade política e da irracionalidade partidária que por aqui anda em franca e perigosa ascensão...

Acontece, porém, que depois da UNITA ter sido amplamente condenada por causa da agressão perpetrada por alguns dos seus militantes a jornalistas da TPA e da TVZimbo, estas duas estações televisivas, em resposta, acabaram por transformá-la em vítima de uma tesourada na Constituição, que não passaria pela imaginação do melhor dos humoristas...

Este e outros episódios da mesma natureza, ao levarem o MPLA, ancorado num discurso extremista, a fazer o trabalho da UNITA como, em 1992, levaram a UNITA, agarrada a um discurso intimidatório, a fazer o trabalho do MPLA, aconselham a que se dê primazia à ponderação e ao diálogo numa clara demonstração de que é sempre mais saudável exercer o poder político levantando as "cercas partidárias" para o libertar dos impulsos incendiários dos promotores de verdadeiras "intifadas" populistas e anti-democráticas.

Ao abraçar a moderação e o espírito de diálogo com o reenvio da Lei Eleitoral ao Parlamento, o Presidente parece querer demonstrar que não pretende passar à História como uma figura de Almanaque nem de um tempo perdido.

O tempo encarregar-se-á, no entanto, de provar se, obtendo cedências significativas da oposição neste domínio, o MPLA está preparado para, em contrapartida, vir a confrontar-se com exigências que, da parte da UNITA, poderão vir a passar pela reconfiguração da Comissão Nacional Eleitoral.

O tempo encarregar-se-á de provar ainda se o MPLA está disposto a deixar de ser um partido de ilhas e de várias cabeças desligadas entre si, as quais, ao terem instalado internamente a desconexão política no processo de aprovação da versão inicial da Lei Eleitoral, acabaram por obrigar a sua Bancada Parlamentar a acolher nos seus braços uma mulher grávida de oito meses enviada pela Casa Civil e a registar um filho que não era inteiramente seu ...

Não havendo muito tempo a perder com ensaios, o tempo encarregar-se-á de provar se a reconfiguração do posicionamento político do MPLA imposta pelo seu líder representa, na verdade, o início de um novo ciclo ou se não estaremos diante de uma simples operação de charme.

Desfazer estas e outras dúvidas, pressupõe, agora libertar o poder judicial da sua captura pelo poder político, intensificar a promoção da pluralidade informativa nos meios de comunicação social pública para que estes não sejam confundidos com um "quarto" do poder político, e apostar na credibilização das instituições e no aprofundamento do debate democrático interno para que o MPLA não seja visto como um velho túmulo soviético reprodutor por excelência do centralismo democrático, do carneirismo político e do culto de personalidade.

Desfazer essas e outras dúvidas, pressupõe, assegurar, promover e proteger a independência dos quadros, sem cair na tentação de os adocicar com nomeações para cargos políticos, que, como vimos no passado, acabam por funcionar como uma forma de os silenciar e corromper.

Desfazer essas e outras dúvidas, depois da experiência vivida com a disputa do cargo de Secretário Geral do MPLA que, em 1989, envolveu João Lourenço e Lopo do Nascimento, pressupõe abrir o sufrágio a várias candidaturas para a eleição do seu Presidente no próximo congresso.

Desfazer essas e outras dúvidas, pressupõe em definitivo, levantar e enterrar as "cercas políticas" que andam a castrar a afirmação dos nossos partidos políticos que, de um e do outro lado da barricada, continuam a não conseguir impor-se como instrumentos de plena realização democrática.

As suas lideranças advogam a liberdade na construção do Estado Democrático e de Direito, mas, na primeira oportunidade, são primeiros a embalsamar a separação de poderes e a liberdade.

Advogam para as suas fileiras o mais amplo, diversificado e plural arejamento político, mas, lá dentro, são os primeiros a cultivar, de forma atroz, o medo da diferença.

Medo da diferença daqueles, que pensando pela própria cabeça em voz alta e impondo a sua afirmação crítica e a sua superioridade moral, recusam confundir "estar unidos com ser unânimes e divergir com ser intolerante".

Ao expelirem esses medos e ao serem herdeiros e promotores de uma cultura de exclusão, com o software enferrujado, muitos dos nossos políticos esquecem-se que correm o risco de serem atropelados pelo poder da liberdade democrática da cidadania.

Sem ligação à essa liberdade, correm o risco de passarem a ser vistos como santolas e, a partir daí, como dizia o fiscalista português Medina Carreira, a ostentarem muita casca, mas muito pouco conteúdo.

Sem ser preciso muita martelada, se os seus impulsos não forem travados, corremos, no entanto, o risco de continuar a assistir ao triunfo do espírito de poder vigente: um Estado que se confunde com o partido que controla o Estado. E uma oposição que aspira também a fazer o mesmo quando for Estado...

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