De repente, com a voz a expelir o rugir de um leão, irrompe pelo escritório adentro um homem branco, alto e mal amanhado, e que, aberto e simpático, tinha como cartão de visita a saliência de um dente pontiagudo manchado pelo consumo excessivo de tabaco.
Era Gerald Bender - (1941-2017), - o norte-americano que há muitos anos, vinha acompanhando o percurso do MPLA e que, haveria de estabelecer comigo uma relação que, embora distante, me permitiu identificar e partilhar pontos de vista comuns na análise da crise política que, na véspera das primeiras eleições, haveria de atormentar Angola por mais de duas décadas.
Diante de mim, estava, pois, o intelectual norte-americano que, após uma visita a Angola ainda no período colonial, não hesitou em desconstruir o mito do desenvolvimento económico de Angola defendido pelos portugueses no livro "Angola sob o domínio português - Mitos e realidade", que acabaria, de resto, por ser a sua tese de doutoramento.
Muito antes de mim e muito melhor do que eu, em meados da década de oitenta do século passado, ainda na Presidência da República, conhecera-o o primeiro embaixador de Angola nos Estados Unidos, o jornalista e meu amigo José Patrício, que o define como "um académico genuinamente apaixonado por Angola e uma peça incontornável na elaboração das políticas das administrações norte-americanas para o nosso país".
Associado aos Think-tanks que analisavam o conflito angolano, este professor da University of Southern Califórnia, era convidado permanente para as "Hearings" (audições) do Sub-comité para a África do Congresso Americano além de ter sido consultor das petrolíferas do seu país, designadamente da Amoco.
José Patrício reconhece que Gerard Bender acabaria por lhe ser extremamente útil na percepção dos meandros do sistema político norte-americano ao transformar-se num canal privilegiado para o Departamento de Estado lhe fazer chegar mensagens e vice-versa.
Embora mais próximo da ala liberal do MPLA - recorda o diplomata angolano - sempre pugnou por uma Angola reconciliada e em paz e nunca subestimou a realidade UNITA enquanto força política. Por isso, era apologista da política do "Power sharing" contra a tentação hegemónica e a arrogância do MPLA.
Nos últimos anos da sua vida desencantou-se com o MPLA por causa da corrupção instalada em Angola e por causa de uma governação que se aproximava cada mais dos ditames dos regimes autocráticos.
Mas, nunca deixou também de ser implacável para com o pendor tribal em que assentava a luta da UNITA e contra o espírito Polpotiano empregue por Jonas Savimbi para poder controlar e domesticar o seu rebanho e eliminar fisicamente os seus adversários internos como Jorge Sangumba, Tito Chingunji, Wilson dos Santos e outros.
Mais preocupado com quem detinha o poder, fez parte da época em que o MPLA se lançou ferozmente na captura do Estado e, a partir daí, sem procuração passada por ninguém, se auto-investiu como pai de todos angolanos.
Fez parte de um tempo em que se de dia odiava a iniciativa privada alheia, à noite, não perdia tempo em fazer crescer nas suas fileiras os oligarcas que se transformariam nos novos senhores da República.
Antes de morrer, não resistiu a deixar-nos como um dos seus legados, esta frase lapidar: "O MPLA nunca perdeu uma oportunidade para perder uma oportunidade".
Se este aviso encontra pleno acolhimento no percurso deste partido, a história, no entanto, vem demonstrando que o MPLA não é o único grande perdedor de oportunidades em Angola. E não é porquê?
Porque a perda de oportunidades ao longo dos tempos e em distintas épocas, desde a segunda metade do século passado, tem sido corporizada de forma isolada ou compartilhada com o MPLA por outros actores políticos.
Não tinham ainda sido solidificadas as sementes para o lançamento, a partir do exterior, da luta armada e - como explica o médico e nacionalista Manuel Videira na sua notável obra intitulada "Um Intelectual na Rebelião" - já o movimento nacionalista impulsionado em Kinshasa pelo MPLA e pela FNLA, não perdia tempo para perder a primeira grande oportunidade para unir esforços para formar uma ampla frente comum de libertação.
A luta pelo controlo do poder por parte de Viriato da Cruz e de Agostinho Neto no seio do MPLA, desde muito cedo levou este movimento a abraçar uma saga auto-destruidora que daria lugar também à sucessivas perdas de oportunidades que acabaram por acentuar o enfraquecimento da sua unidade interna.
Essas perdas de oportunidades em 1974 culminaram com a erupção de duas grandes dissidências no seio do MPLA - a Revolta Activa e a Revolta do Leste, - que acabariam por marcar a natureza ditatorial do regime imposto aos angolanos após a Independência.
Com a chegada de dos Acordos de Alvor em Janeiro de 1975, logo nos convencemos de que a pausa firmada em Portugal com o agendamento das primeiras eleições livres e democráticas abriria o caminho para a implantação no nosso país de um regime político pluralista.
A ambição pessoal dos líderes do MPLA, da UNITA e da FNLA falou mais alto e os angolanos, com o país dividido em três, acabaram por perder a primeira grande oportunidade de decidirem o seu destino pela via do voto.
Dominado pelo absolutismo de uma liderança centralizadora, repressiva e unipessoal daquele por "quem se espera"(va), uma nova oportunidade perdida para a afirmação do MPLA como partido democrático, atingiria as suas fileiras no sangrento mês de Maio de 1977 com a eclosão da sua terceira grande dissidência interna.
Na Jamba, no seio da UNITA suceder-se-iam também tentativas de dissidência com outras variáveis e outros protagonistas, abafadas pelo poder da máquina repressiva e sanguinária do mais persistente líder da rebelião armada em Angola, que gostava de expor os seus tiques messiânicos.

(Leia este artigo na íntegra na edição semanal do Novo Jornal, nas bancas, ou através de assinatura digital, disponível aqui https://leitor.novavaga.co.ao e pagável no Multicaixa)