Num cenário político demasiado fragmentado, com nove formações competidoras, abarcando todas as correntes políticas, essas eleições dificilmente darão maioria absoluta a um único partido.
Se, por um lado, é um dado adquirido de que nenhum partido sozinho alcançará a maioria absoluta dos votos, por outro, a formação de maiorias nos dois espectros ideológicos (esquerda e direita), afigura-se também difícil o que poderá acrescentar crise política à crise sanitária.
Tudo indica que o grande vencedor dessas eleições será a extrema-direita que, levada ao colo por alguns meios de comunicação social, como a TVI e sua sucursal CNN Portugal e CMTV, se prepara para passar dos 1,29 por cento, conquistados em 2019, para um score entre os cinco e os dez por cento, segundo várias sondagens.
Essa extrema-direita salazarista, racista e xenófoba ultrapassará a direita tradicional do CDS, partido fundador da democracia portuguesa, que luta pela sua sobrevivência, depois do mal gerido adiamento da disputa interna pela liderança.
O referido adiamento, decidido pela actual direcção contra a vontade de alguns barões, agravou a crise no CDS e provocou o afastamento de muitos notáveis, incluindo históricos que anunciarem publicamente que não votarão no seu partido, numa espécie de apelo para que não se vote nessa formação.
Se a extrema-direita surge antecipadamente como a grande vencedora, a esquerda, designadamente o Partido Comunista (PCP) e Bloco de Esquerda (BE), antigos aliados dos socialistas na "geringonça", aparecem como os mais penalizados por terem votado com a direita e sua extrema o chumbo da proposta de Orçamento de Estado (OE) dos socialistas.
Neste quadro, o BE, actual terceira força política com 19 deputados, poderá sofrer maior penalização que o PCP que tem um eleitorado menos flutuante.
A interrupção abrupta da legislatura, consequência do chumbo do orçamento, classificado como o mais à esquerda de todos OE socialistas, criou uma crise política num momento em que Portugal enfrenta outra crise, a sanitária provocada pela pandemia, atingindo fortemente a economia.
O chumbo comprometeu a aplicação de medidas de apoio às famílias como a gratuidade das creches para todas as crianças, o aumento das pensões de reforma mais baixas, apoios à classe média e melhoria do poder de compra dos portugueses.
Medidas que, de acordo com os socialistas, visam também mitigar o grave problema demográfico que o país enfrenta com uma população envelhecida, situação que cria dificuldades à segurança social em particular e à economia portuguesa em geral.
Assim, nos inquéritos à população realizados por empresas de sondagens, a generalidade dos portugueses manifesta-se contra essa crise que, na sua opinião, podia ter sido evitada se as partes da "geringonça" fossem menos intransigentes.
À esquerda, a evidente dificuldade de relacionamento entre o PS e os seus antigos parceiros parece indiciar muitos obstáculos para a formação de uma nova "geringonça" pós-30 de Janeiro, sobretudo com os mesmos protagonistas.
De tal forma é a fulanização no relacionamento entre os partidos de esquerda que a coordenadora do BE disse, num recente debate na TV, que o líder socialista, António Costa, é o "obstáculo" no entendimento entre o seu partido e o PS, insinuando que o entendimento seria possível se os socialistas mudassem de líder.
Assim, PCP e BE entram nesta competição com dois objectivos: impedir que a direita regresse ao Poder e que os socialistas obtenham maioria absoluta. Só assim conseguiriam justificar o voto pelo derrube do Governo do PS e afastar uma consequente crise interna nos seus partidos.
Nessa tensão e crispação à esquerda, os socialistas responsabilizam os seus ex-aliados pela crise política, enquanto PCP e BE acusam o PS de não ter feito as cedências que esperavam, preferindo ir para eleições na esperança de obter uma maioria absoluta.
Para António Costa, é importante convencer os portugueses de que, para continuar a governar, precisa de se reforçar eleitoralmente e, para isso, faz o discurso da vitimização, culpabilizando os antigos aliados, mostrando claramente que perdeu a confiança no PCP e no BE.
Separados nas sondagens por cinco a sete pontos, o PS (sempre à frente) e o PSD enfrentarão ambos dificuldades para formar coligações pós-eleitorais com os partidos da sua área ideológica e garantir no Parlamento uma maioria que suporte o governo a ser formado depois das legislativas de 30 de Janeiro.
Rui Rio do PSD é criticado e acusado por toda a esquerda, por alguma direita e inclusive dentro do seu próprio partido, por tentar suavizar a extrema-direita ao não recusar claramente qualquer aproximação aos neo-salazaristas.
Com o CDS, seu aliado tradicional, a representar pouco mais de dois por cento dos votos e a Iniciativa Liberal entre os três e os cinco por cento, Rui Rio sabe que, mesmo ganhando eleições, será impossível formar uma maioria de direita, sem os votos dos fascistas.
Neste contexto, o líder do PSD vai-se afirmando como político do centro, numa estratégia adoptada para captar votos à esquerda e à direita e conseguir desta forma chegar ao poder.
Apesar de serem legislativas para eleger 230 deputados e da maioria eleita sair o Governo, os dois principais líderes políticos assumem abertamente que estas eleições são para escolher o primeiro-ministro.
Nessa bipolaridade, António Costa vai aproveitando a pré-campanha para associar o seu adversário directo à extrema-direita e responsabilizar de forma dramática os seus antigos parceiros da "geringonça" pela crise política actual e um eventual regresso da direita e ascensão da extrema-direita ao Poder.
Colocando vários epítetos a uns e outros e afirmando-se como a única "garantia de estabilidade governativa", o ainda primeiro-ministro português justifica assim o seu apelo à maioria absoluta dos votos no seu partido.
Os socialistas apresentam uma campanha muito profissionalizante com uma espécie de marcação homem-a-homem ao PSD, visível nos frente-a-frente na TV, onde, independentemente do adversário com o qual debata no momento, Costa direcciona os seus ataques ao seu adversário principal, Rui Rio.
Costa já assumiu que, se perder a eleição, se demite da liderança do PS, aumentando ainda mais a pressão ao eleitorado socialista que, certamente, quererá evitar uma crise dos socialistas em cima de uma eventual crise política nacional.
No caso de derrota do PS e vitória do PSD com maioria relativa, o País cai numa crise política com uma espécie de impasse que a saída de Costa da liderança dos socialistas criará.
O PS entrará em processo de eleição interna para escolher o novo líder de quem dependerá a decisão de apoiar ou não, mesmo com a abstenção, a formação de um governo minoritário do PSD, como forma de impedir que a extrema-direita tenha uma palavra na governação.
Neste período de pré-campanha, destacam-se os debates televisivos, frente-a-frente de modelo inapropriado, pouco esclarecedor das ideias e dos programas dos concorrentes, contudo com grande audiência.
Em 25 minutos, num formato com excessiva intervenção dos jornalistas que muitas vezes parecem contendores, em vez de mediadores, os debates televisivos tornaram-se numa ferramenta importante na captação do voto.
Nesse modelo, o político parece obrigado a exibir a sua performance, como se estivesse num ringue de boxe, num combate, avaliado no final por analistas, jornalistas e comentadores aos quais cabe identificar o "vencedor" e o "derrotado" e as "armas" usadas por cada um.
Trata-se de um modelo de debate favorável a sound bites, usados repetidamente pelos líderes políticos, conscientes de que têm de apostar fortemente nas acções na comunicação social, epicentro da campanha eleitoral, por causa da pandemia Covid.
Seja qual for a composição do Parlamento que sair dessas eleições, olhando para as listas de candidatos a deputados, uma questão salta à vista: as causas dos afrodescendentes, embandeiradas na legislatura interrompida pela então deputada Joacine Katar Moreira, deixam de ter uma porta-voz.
Joacine Katar Morreira, eleita como cabeça de lista do Livre, partido que pouco depois lhe retirou a confiança política, mas que se manteve no parlamento como deputada "não inscrita" (independente), não se candidata por falta de tempo para organizar um partido ou movimento que servisse de trampolim para a sua reentrada no Parlamento português.
Nestas eleições, nenhum partido tem um afrodescendente como cabeça de lista, nem em lugares cimeiros das listas, onde geralmente figuram barões e baronesas, categorias que não incluem afrodescendentes.
Desta forma, para além da marginalidade das questões dos afrodescendentes no debate político parlamentar, antevê-se, sobretudo, uma menor representatividade étnico-racial na próxima legislatura portuguesa.