Organizada pelo chanceler da Alemanha Otto Von Bismarck (1815-1898), a Conferência colonial de Berlim, que durou três meses (de Novembro/1884 a Fevereiro/1885), visou, na opinião dos seus promotores, "evitar os mal-entendidos e as disputas que poderão, no futuro, resultar de novos actos de ocupação" do continente africano.
Em Berlim, os povos africanos não estiveram representados. Os participantes (Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Estados Unidos, Espanha, França, Império Otomano, Itália, Países Baixos, Portugal, Reino Unido, Rússia, Suécia-Noruega) retalharam o Continente para melhor reinar e enriquecer os seus estados, retirando dignidade aos povos de África.
Essa divisão, crime contra a Humanidade, como consideraram os países africanos reunidos em conferência em Berlim, em 2010, para assinalar os 125 anos dessa tragédia e exigir reparações e compensações, continua a marcar a vida de África e sua diáspora.
As consequências dessa divisão arbitrária e bárbara, bem como da colonização e da escravatura, os maiores crimes contra a Humanidade, nomeadamente as suas marcas profundas, visíveis e inultrapassáveis, perduram e perdurarão no tempo.
A Conferência de Berlim continua a ser o "fundamento dos conflitos internos em África", como afirma o historiador nigeriano Olyaemi Akinwumi, da Universidade Estatal de Nasarawa.
Para o pesquisador da Nigéria, a referida Conferência causou danos irreparáveis e alguns países sofrem até hoje com isso. Essa divisão, recorda em declarações à DW, "foi feita sem qualquer consideração pela história da sociedade, sem ter em conta as estruturas políticas, sociais e económicas existentes."
Cento e quarenta (140) anos depois de Berlim, em 2024, em Angola, um grupo restrito, nas vestes de maioria política, decidiu retalhar o País, criando três novas províncias e centenas de novos municípios, sem ouvir as populações.
O mesmo grupo que, fiel ao seu comportamento fundeado no estilo "quero, posso e mando", aportuguesou, há cerca de dez anos, a grafia bantu dos nomes das regiões, localidades e rios do País, sem consultar ninguém, volta, com esta divisão, a infantilizar os angolanos, como os europeus sempre fizeram com os africanos.
Retalharam Luanda, criando a nova província de Icolo Bengo, Cuando Cubango, repartindo em Cuango e Cubango, bem como o Moxico, engendrando, para além da província com o mesmo nome, uma outra, a do Kassai Zambeze.
Como se de uma peça de bovino se tratasse, a divisão mais aberrante é a de Luanda, que parece talhada para separar o filé mignon do peito alto e, assim, facilitar o controlo dos que continuam a alertar que as vacas de tão magras se tornaram intragáveis.
Com a nova divisão, a cidade de Luanda deixou de existir. A confusão, a pressa e a forma atabalhoada como retalharam a província de Luanda, ridiculamente transformaram Angola no único país africano cuja capital não é uma cidade.
Isso mesmo foi confirmado pelo PR, no comunicado final da recente reunião do Conselho da República, onde se lê que o acto central das comemorações dos 50 anos de Independência Nacional terá lugar na "província de Luanda, capital da República de Angola".
Com essa "divisão político-administrativa" que visa, na opinião dos seus autores, "promover o desenvolvimento equilibrado do território, aproximar os serviços públicos aos cidadãos e garantir a ocupação integral do território", o País passa de 164 a 326 municípios.
"Racionalizar os serviços da administração do Estado, aumentando a sua eficácia, eficiência e equidade", ou seja, uma melhor distribuição da riqueza, são outros objectivos pretendidos pelos promotores da acção.
Num estado falhado e totalmente falido, com crianças, mulheres e homens a passar e/ou a morrer à fome, com mais de quatro milhões de crianças sem escola, o presente e o futuro sombrio, o Poder decide retalhar o País para melhor reinar, querendo dizer que se lixe o Povo e os seus problemas.
Este País falido, a partir de Janeiro de 2025, dentro de pouco mais de quatro meses, vai aumentar exponencialmente a despesa pública, consequência da criação de novas estruturas e novos organismos do Estado provinciais, municipais e comunais.
Se retalhar o País nas costas dos povos define a natureza endocolonial do regime, a sua efectivação quando quase metade da população vivem na pobreza extrema, e depois de um relatório da FAO revelar que mais de 11 milhões de angolanos passa fome, mostra desnorte de quem governa.
Mostra, sobretudo, um grupo sem ideia e projecto políticos, para lá da própria sobrevivência política. Para isso, necessita de aumentar os caciques, nomeando centenas de novos chefes e chefitos, prontos a usufruírem das mordomias à mwangolé, correspondentes aos cargos e carguitos do Estado nas novas províncias e novos municípios.
Tudo isso, depois do Estado, na voz da titular das Finanças, Vera Daves, anunciar que, por causa da dívida pública, está com dificuldades em pagar dentro do prazo os salários dos funcionários públicos e a situação pode-se manter por tempo indeterminado.
Acontece, ainda, poucos dias após a adopção de medidas de austeridade financeira pelo Ministério das Relações Exteriores, numa altura em que funcionários diplomáticos, colocados no estrangeiro, estão há meses sem salários, a viver da caridade de pessoas individuais ou colectivas para fazer face a necessidades básicas.
Segundo a ministra das Finanças, "para ser totalmente honesta, existe o risco de os salários da função pública voltarem a atrasar-se". O kilapi do País é tal que, adianta, "sempre que entra algum dinheirinho (na conta do Estado), é automaticamente consumido pelo serviço da dívida", uma espécie de débito directo obrigatório.
Consequentemente, a moeda nacional desvaloriza diariamente, os cidadãos voltaram a ter de gastar milhões de kwanzas para, por exemplo, comprar bilhetes de passagem para viagens ao estrangeiro, fazendo lembrar os piores anos da guerra.
O tsunami económico e financeiro que se abateu sobre Angola é tão devastador que o Orçamento Geral de Estado (OGE) 2024, de acordo com o semanário Expansão, tem um buraco de 4,4 biliões de Kwanzas porque, devido às dificuldades em aceder a financiamentos, o Executivo está a receber menos dinheiro que o previsto.
Quando se impunha cortar nas despesas excessivas do Estado, a começar pelos gastos supérfluos dos detentores de cargos públicos e seus hiperdimensionados gabinetes, tal grupo restrito tirou da cartola um coelho: retalhar o País para melhor reinar.
Para defender o indefensável, o grupo, fazendo do País sua coutada, instrumentalizou cabos de propaganda, alguns dos quais "académicos" que, com medo de perder o lugar de privilégio, penosamente advogam um pseudo inquérito em que as populações teriam sido ouvidas.
Tais académicos ignoram que, por um lado, a credibilidade de qualquer inquérito está directamente indexada à do seu autor. Por outro, a sua validade depende do método usado. Por isso, reunir, pública e de forma condicionada, numa sala, um grupo de pessoas para ouvir a sua opinião sobre um assunto, é mero acto de propaganda política.
Os mesmos académicos, sempre ignorando a ciência, acreditam que é possível avaliar o Poder político apenas pelo que propala, fazendo letra-morta do tipo de regime e prática governativa.
Esses apoiantes do Poder, no alto do seu egoísmo, mostram-se indiferentes às desigualdades e exclusão da maioria que se mantém na pobreza e vê as suas condições de vida a piorar, anos após anos, políticas atrás de políticas.
Académicos que piamente ou por conivência acreditam ser possível uma melhor repartição da riqueza, sem transparência, sem se saber onde, como, quando e porque o Estado gasta cada kwanza do País.
Confiando no exército domesticado e na polícia violenta, o Estado autoritário parece estar a parafrasear o poeta inglês Hilaire Belloc, nascido em 1870, que sobre a ocupação e exploração de África pela Europa, escreveu: "aconteça o que acontecer, nós temos a metralhadora, eles não".
Esquece-se que, mesmo em situação de desvantagem em termos bélicos, na luta pela dignidade e pelo direito de decidir o seu próprio destino, os angolanos usaram a violência como forma de resistência.
No momento da mais baixa popularidade do Presidente da República, a elite do Poder, em vez de ouvir o Povo, discutir criticamente sobre o estado do País e preparar a transição do actual regime político para um outro, assente no respeito pela dignidade humana e justiça para todos, opta por retalhar para melhor reinar, subjugando e oprimindo.