A capital da RDC, Kinshasa, apareceu, nos últimos dois dias, com dezenas de cartazes e outdoors (foto) com a cara de Joseph Kabila e com frases indicadoras de que o Partido do Povo para a Reconstrução e Democracia (PPRD), liderado pelo também Chefe de Estado, já escolheu o seu candidato às eleições presidenciais de 23 de Dezembro próximo: Joseph Kabila.

Aquilo que inicialmente parecia, mesmo para analistas congoleses ouvidos pela imprensa local, uma provocação sem consequências graves, rapidamente se transformou numa certeza, depois de começarem a ser divulgadas notícias de que o PPRD está em plena campanha de promoção de Kabila como seu candidato em todo o país, incluindo pequenas aldeias longínquas.

Apanhando tudo e todos de surpresa, a possível candidatura de Kabila ainda não foi sequer digerida pela oposição, até porque esta vê a Constituição da República como uma "barreira intransponível" para que tal candidatura possa ser concretizada, quando consente apenas dois mandatos consecutivos no cargo de Presidente da República, o que Joseph Kabila completou já em Dezembro de 2016.

Recorde-se que a manutenção no poder até agora só foi possível porque Kabila e a oposição assinaram um acordo, o acordo de São Silvestre, a 31 de Dezembro de 2016, com a intermediação dos bispos católicos congoleses, como única forma de travar as múltiplas manifestações que estavam a ocorrer e nas quais, só entre Setembro e Dezembro desse ano, provocaram a morte a mais de 150 pessoas das dezenas de milhares que saíram às ruas a exigir a sua saída do poder.

Nesse acordo, Kabila comprometeu-se a realizar eleições durante 2017, o que não fez, justificando com atrasos no registo eleitoral, ganhando mais um ano no poder, refazendo a promessa de organizar eleições a 23 de Dezembro de 2018, apesar de as manifestações e as mortes terem voltado às maiores cidades da RDC, desta feita em manifestações organizadas por movimentos ligados à igreja católica.

Esta súbita arrancada da "campanha" pró Kabila emerge de um contexto em que alguns países, incluindo Angola, o Ruanda e a França, através dos seus Chefes de Estado, vieram a público apelar e aconselhar Kabila a não se recandidatar, a cumprir o acordo de São Silvestre e a deixar o poder logo após as eleições.

Conselhos enviados de Paris

O Presidente angolano, a partir de Paris, no decurso da sua visita oficial a França, aproveitou para clarificar que não existe nenhuma conspiração contra Kabila, há apenas uma preocupação de que a RDC consolide a sua estabilidade, até porque, sublinhou, "de nada valem eleições se estas não forem reconhecidas pela comunidade internacional", o que seria claramente o caso se a eventual recandidatura se vier a confirmar, como tudo aponta ser o caso.

Os analistas congoleses viram a recente remodelação do Tribunal Constitucional como um sinal de que o regime está a preparar a recandidatura de Kabila ao colocar juízes mais "sensíveis" às pretensões do PPRD, embora a Constituição não tenha sido alterada, mantendo a proibição de um terceiro mandato consecutivo.

No entanto, para ultrapassar esse obstáculo, algum truque na manga Kabila terá, admitem hoje alguns media congoleses. Mas qual?, é a questão para a qual restam poucas respostas.

A primeira é realizar eleições contra tudo e contra todos, mesmo correndo o risco de os principais partidos não alinharem, colocando no boletim de voto concorrentes-fantoche, mesmo sob a ameaça de severas sanções da comunidade internacional, incluindo a União Africana (UA), liderada pelo Presidente do Ruanda, Paul Kagame, que já disse estar frontalmente contra essa possibilidade.

Mais: Lambert Mende Omalanga, ministro da Comunicação Social da RDC e porta-voz de Kabila, acusou publicamente Kagame e Lourenço de estarem a forjar um "complot" para afastar o Presidente da RDC, com o apoio do Presidente francês, Emmanuel Macron.

Na mesma ocasião garantiu que o seu Governo não iria aceitar tal coisa e prometeu "ir até ao limite", embora sem explicar como e o quê, na resposta a dar a essa "task force" externa na sua procura de intromissão nas questões internas congolesas.

E foi a isso que respondeu o Presidente angolano a partir de Paris, sublinhando que não era só ele, nem Kagame nem Macron, mas também o sul-africano Cyril Ramaphosa ou o líder da comunidade da África Central, Ali Bongo, do Togo, que estão preocupados com o futuro da RDC e da sua grandeza enquanto país e enquanto potencial desestabilizador de toda a região dos Grandes Lagos ou mesmo continental.

E ainda que não era nenhuma "conspiração" contra Kabila, mas apenas um aconselhamento ao Presidente congolês e o apelo a que seja cumprido o acordo de São Silvestre, que desde 31 de Dezembro de 2016 pressupõe a saída do poder de Kabila logo após as eleições.

O truque na manga de Kabila

É certo que Joseph Kabila está a dar mostras de querer mesmo avançar, contra o acordo que assinou, contra a ONU e a União Africana, e contra o seu próprio povo, largamente indisposto com ele, que manteve e aprofundou a perpétua pobreza extrema do país, apesar de ser um dos mais ricos do mundo em recursos naturais.

Isso mesmo resulta na forma de conclusão da aposta do seu partido, o PPRD, na distribuição de cartazes com a sua cara e a anunciar estar a "100 %" com Kabila, de t-shirts, desde as ruas de Kinshasa, às mais recônditas aldeias do Congo profundo.

E ainda do calendário eleitoral, que impõe o fim do prazo para apresentação de candidaturas presidenciais para as eleições de 23 de Dezembro, daqui a escassas 9 semanas, sem que o PPRD tenha aludido a qualquer outro nome como possível candidato, deixando, com mais ou menos semântica, o espaço todo no palco da corrida eleitoral ao seu "candidato Kabila".

Mas como vai Kabila contornar a Constituição? E evitar a repetição do caos que ocorre sempre que existem eleições com transição de poder? Ou fazer esquecer que em quase 60 anos de independência, nunca houve uma mudança de rosto no poder sem estar alicerçada em violência extrema, com milhares de mortos por arrasto? Ou ainda ultrapassar a carta da União Africana, que não deixa espaço de manobra para a conquista ou manutenção de poder à margem da Constituição de cada um dos seus membros?

À excepção da primeira pergunta, todas as outras são respondidas com um cenário único: fazer com que o seu nome seja o único capaz de emergir do caos para estabilizar a RDC depois de um previsível período de violência.

Mas a primeira é aquela que contém a eventual resposta mais importante: a questão das imposições e limites constitucionais à sua recandidatura.

Kabila pode estar a desenhar um plano que lhe permita esgrimir argumentos no sentido de que não está a incumprir com o disposto na Constituição, o que passa por alegar que o período em que manteve o poder interinamente, graças ao acordo de São Silvestre, nos últimos dois anos, é o suficiente para que a sua candidatura no próximo 23 de Dezembro não seja considerada sucessiva.

E é nisso que parecem acreditar também os seus homens no PPRD, como o disse, sem detalhes, o secretário permanente do partido, Emmanuel Ramazani Shadari, quando, numa recente mensagem radiofónica, afirmou: Estamos com Kabila, Continuamos com Kabila e continuaremos com Kabila".

Falsa garantia?

A tudo isto, surge encimada a garantia dada há meses pelo seu ministro Lambert Mende de que não seria candidato, porque não lho permite a Constituição. Agora, questionado pelos jornalistas sobre essa garantia, respondeu no mesmo tom: "Não estamos a prever mudar a Constituição!".

O que não será necessário se a opção for argumentar com este tempo de poder interino como separador do impedimento constitucional baseado na proibição de um 3º mandato... consecutivo.

Mas existem outras "tecnicalidades" que podem ser aduzidas, como relatam os media congoleses: o facto de ter havido uma mudança constitucional entre 2006 e 2011, levando o Tribunal Constitucional, para onde entraram pelo menos dois aliados de Kabila como juízes, a considerar a não aplicabilidade dessa alínea constitucional porque o ainda Chefe de Estado foi eleito em 2001 e a alteração sucedeu durante os seus dois mandatos.

Ou ainda a convocação de um turbo-referendo que pode ser condicionado ou manipulado de forma a dar a resposta pretendida: a sua recandidatura e o inevitável lançamento da República Democrática do Congo num novo banho de sangue, como temem os Presidentes João Lourenço, que lidera o Órgão de Cooperação Política, Defesa e Segurança, da SADC, e Paul Kagame, que é o actual líder da União Africana e Presidente do Ruanda.