Utilizo aqui, intencionalmente, a expressão "agente duplo", pois não me restam dúvidas de que ele, o "Vostok", pudesse trabalhar conscientemente para as duas partes: para nós e para a PIDE. Porém, pelo resultado final da sua "acção conspirativa", acho melhor chamá-lo "agente da PIDE" infiltrado na nossa organização.

Para o Juca Valentim, o "Vostok" - várias vezes referido entre nós por "Planeta" - seria um homem de confiança da direcção da guerrilha na I Região Político-Militar, que até o utilizaria para fazer chegar mensagens para as redes clandestinas e vice-versa. Através dele transitava todo tipo de apoio que conseguíamos juntar e remeter para os nossos companheiros de luta. Estávamos, pois, muito dependentes dos seus "serviços".

Desde muito cedo compreendi que alguma coisa poderia não estar certa no papel jogado pelo "Vostok"... A "Frente Interna" - outra rede clandestina com quem o Juca Valentim tinha estabelecido cooperação - também usava o mesmo "agente" nos seus contactos com a mata...

O Juca Valentim tinha uma verdadeira "obsessão" por articular tudo quanto fosse clandestinidade, tornando-se, assim, o seu indiscutível centro de gravidade... Nessa altura, quase nada escapava ao "radar" do Juca. Sendo assim, quase nada escapava, igualmente, ao "Vostok". O princípio estava bem definido: "Quando o Chefe confia no homem, é porque o homem é de confiança".

Passei a desconfiar desse nosso "colaborador", quando me apercebi que muito daquilo que ele trazia poderia ter, previamente, passado pelas mãos da PIDE... Isso com base no seguinte raciocínio: a PIDE - ou a tropa portuguesa - capturava documentação da guerrilha e, depois, entregava-a ao "Vostok" que, por sua vez, a entregava ao Juca, fazendo aparentar a sua importância junto da organização na mata...

Alertei o meu Camarada Juca Valentim para o risco que corríamos, caso o "gajo" estivesse a trabalhar para a PIDE... E o Juca disse-me: «O "Vostok" é da inteira confiança do "Comandante Ingo"». Ponto final.

Na altura, para nós, o "Comandante Ingo" era o grande emblema da I Região Militar do MPLA. Por isso, não faria qualquer sentido desconfiar do estafeta... Ao que o meu saudoso Camarada Juca Valentim acrescia: «Ele já vem a trabalhar com a nossa guerrilha há muito tempo. Se fosse "agente da PIDE", a guerrilha já teria sido derrotada...». Mesmo assim, mantive as minhas reservas...

Até que um dia o meu Camarada Juca Valentim comunicou a mim e ao Vicente que o "Vostok" estava a programar um encontro nosso com o "Comandante Ingo", um encontro que deveria ter lugar num certo ponto no mato, próximo de Catete. Aí, ajustaríamos a nossa estratégia de luta.

Desconfiei da proposta e disse ao Juca que me opunha a tal acção, pois ela poderia redundar na nossa prisão, em cheio, ou mesmo na nossa eliminação física, sem qualquer apelo nem agravo... E não morreríamos apenas nós, como, também, o próprio "Comandante Ingo" e todos quantos o acompanhassem. Dissipei algumas eventuais dúvidas: o "Vostok" nem era propriamente um "agente duplo"; era, sim, um pide infiltrado na nossa luta.

Os passos seguintes deram-me razão. Já em Cabo Verde, encontrei companheiros de luta que também tinham conhecido como "estafeta de confiança" o "Camarada Planeta".

Passados alguns anos, o "Camarada Planeta" conseguiu atrair para uma "tocaia" o próprio "Comandante Ingo", sendo preso numa cantoneira de um ponto qualquer na estrada de Catete.

Felizmente, a PIDE não matou o "Camarada Ingo", mas podia tê-lo feito... Optou por preservar a sua vida. Nessa época, a PIDE deixou de matar certos prisioneiros, deixando-os presos e, nalguns casos mesmo, libertando-os depois de perfeitamente neutralizados...

Dois anos antes das nossas prisões, na ânsia de desenvolvermos ainda mais a nossa luta, Juca Valentim, Vicente, Diogo de Jesus e eu preparámos um audacioso plano: a criação de uma estrutura física capaz de servir de resguardo para a confecção de fardamentos para apoio à guerrilha.

Sabíamos que os guerrilheiros da I Região Militar passavam por enormes dificuldades logísticas, entre as quais fardamentos (roupas). O Juca desenhou o esquema de uma "mini-serração" sob a qual funcionaria uma linha clandestina para a confecção de roupas.

Porquê, então, instalar uma linha de confecções por debaixo da "mini-serração"?

Eramos muito influenciados pelas formas de luta da resistência francesa contra os nazis. E aí encontrámos a ideia: a serração é uma actividade que produz muito ruido e onde se movimentam materiais e pessoas. Seria, portanto, um disfarce magnífico para instalarmos uma actividade clandestina subterrânea. Em baixo, seriam confecionadas roupas, e, em cima, estaria o barulho, o ruido da serração. No conjunto da estrutura funcionariam apenas membros do CRL, a nossa organização. Dificilmente seriam detectados...

O passo seguinte, para dar corpo ao nosso projecto. Decidimos enviar a Malanje o nosso companheiro Elias Pedro, com a exclusiva missão de conseguir obter pedras de diamantes. Com a sua venda, iniciaríamos a montagem da nossa "mini-serração", perfeitamente adaptada à instalação, no seu subterrâneo, da linha de confecções.

O Juca Valentim fez o "layout". Arranjámos o dinheiro para a deslocação do Elias Pedro. O Juca preparou o esquema para, quando ele chegasse, ser feita a venda do "produto". O Juca Valentim conseguiu uma articulação com alguém ligado ao Consulado da Inglaterra em Luanda. Montou, igualmente, o programa da aquisição e montagem dos equipamentos, quer os da parte de cima (serração), quer os da parte de baixo (linha de confecções de roupas para a guerrilha). Estava, pois, gizada uma grande operação clandestina que, tendo êxito, criaria um enorme impacto na nossa actividade revolucionária.

O Elias Pedro partiu para Malanje e aí permaneceu por alguns dias. No regresso, para despistar qualquer "curiosidade da PIDE", combinou comigo um encontro no "Polo Norte", um Café situado no piso inferior do edifício onde, depois da Independência, se instalou a SONANGOL.

No balcão do "Polo Norte", sentei-me relativamente perto do Elias Pedro, mas como se não nos conhecêssemos. Porém, fizemos coincidir uma ida ao WC, e é aí que o meu Camarada Elias Pedro, satisfeito, me mostrou um reduzido número de diamantes, dizendo: «Missão Cumprida! O resto apresentarei na próxima reunião...». Saímos do "Polo Norte" separados, cada um na sua direcção. Foi a última vez que vi o meu Camarada Elias Pedro. Não propriamente a última, como verão depois.

Transmiti ao Juca e ao Vicente o resultado do meu encontro com o Elias Pedro: «Missão Cumprida! O Elias Pedro voltou e trouxe o material...». Era o primeiro passo para o arranque da arrojada operação.... Uma fábrica clandestina para servir os nossos camaradas. Um forte impulso para a nossa luta.

A I Região Militar tinha enormes carências de tudo: armamento, alimentação, medicamentos, vestuário, calçado. Sabíamos, inclusive, que os guerrilheiros utilizavam peças resultantes dos bombardeamentos dos portugueses para produzir diverso material de cozinha, por exemplo. Tínhamos a obrigação de os ajudar. Uma acção que corria riscos, mas os riscos são inerentes à nossa luta.

Juca, Vicente, Gilberto, Alcino Borges, Calhandro, Makiala, João Papa, Cosme de Sousa Neto, António Capita, André Mateus Neto, Alberto Correia Neto, Diogo de Jesus, Manuel Jorge, eramos partes de uma grande engrenagem. Nas matas, de armas na mão, estavam os nossos irmãos, alguns dos quais iam morrendo. Tínhamos a responsabilidade de tudo fazer para minorar o seu sofrimento.

Com o êxito da "Operação Diamante", o projecto idealizado pelo Juca, Vicente, Diogo e eu começava a ter pernas para andar...

A minha mãe estava ao corrente do plano. Achou-o interessante. Inclusive, prometeu colaborar, mobilizar gente de inteira confiança para trabalhar no subterrâneo, na linha de confecção.

A seguir ao nosso encontro no "Polo Norte", o Elias Pedro deixou de dar sinal de vida... Pensámos, de início, que por razões tácticas... Talvez para deixar passar algum tempo, despistando a PIDE...

Afinal, o Elias Pedro fora preso pela PIDE. Tememos que o nosso "Castelo" fosse ruir... Teria sido a "Operação Diamante" a levar o Elias Pedro à prisão? Assim, e de seguida, iríamos nós...

O que levara o nosso camarada à prisão era a articulação clandestina que tinha no "Bairro Prenda" - na qual se articulava apenas com o Vicente. Pensei: Felizmente, o "Vostok" não tinha as suas impressões digitais no esquema do "Bairro Prenda"...

Caiu o Elias Pedro e o grupo do "Bairro Prenda". Contudo, ele preservou o esquema que tinha connosco, não havendo qualquer delação da "Operação Diamante" ...

Quando fomos presos eu, Vicente, Juca Valentim e outros Camaradas, pensaei que, nos interrogatórios, os "pides" iriam introduzir matéria ligada ao nosso "link" com o Elias Pedro. Nada disso aconteceu. O nosso Elias Pedro não deixou cair nada sobre aquela acção...

Deixámos de saber dele. Nem o encontrámos. Não sabíamos por onde andava. Ou mesmo se ainda estava vivo...

Passados mais de trinta anos, o Vicente deu-me uma das mais agradáveis notícias: «O Elias Pedro está vivo e vem almoçar connosco no próximo Sábado!». Que Maravilha! Um reencontro tão ansiado e tão inesperado!

No Sábado seguinte, mais de trinta anos depois da "Operação Diamante", eu e o Vicente - os sobreviventes dessa epopeia - sentados à mesa com um dos seus maiores protagonistas: Elias Pedro. Depois de muitos anos de prisão e de deportações, nós e o Elias juntos... Era o reencontro de velhos companheiros de luta.... Tal como nós, o Elias Pedro também andou preso e deportado.

No almoço faltaram outros - fundamentais. Já não existiam: Juca Valentim (assassinado pelo MPLA no 27 de Maio de 1977), Diogo Lourenço de Jesus (morto em combate, durante a Luta de Libertação), Maria Luzia da Costa Pinto de Andrade - minha falecida Mãe -que soube de tudo e que colaborou na sua concepção.

Não passou muito tempo, e o Vicente informou-me, em lágrimas, que o seu amigo do peito, o Elias Pedro, também já não estava vivo. Tinha acabado de morrer. Até pareceu que ele quis sobreviver para tornar possível o nosso reencontro...

Tínhamos combinado um outro almoço, onde narraríamos outras partes das nossas epopeias. Mas o Elias Pedro levou para a tumba as suas histórias. Queria conhecê-las, para vos contar agora, aqui neste espaço de memória...