No tempo dos acentos e consoantes mudas antes do acordo, a língua portuguesa era como um jardim exuberante, com flores acentuadas e consoantes mudas escondidas nas sombras. Os acentos circunflexos, agudos e graves dançavam em torno das palavras, como se fossem borboletas bêbadas num piquenique gramatical. As consoantes mudas, essas criaturas tímidas, apareciam apenas quando lhes convinha, como fantasmas numa festa de Carnaval.

Mas eis que surge o Acordo Ortográfico, montado em seu corcel de regras e excepções. Ele decidiu que as consoantes mudas não eram bem-vindas. Pontapeou-as para fora do dia-a-dia como um ditador linguístico. E assim, muitas palavras emudeceram como se tivessem feito uma dieta radical. Os acentos também foram vítimas desse acordo. O circunflexo, antes tão elegante, foi arrancado de palavras como "pêra" e "côr" e abolido de "vôo".

O desafio é que nem todos, como é o caso de Angola, estão de acordo. E numa realidade já deficiente no ensino da língua portuguesa o desacordo instala-se e a confusão da fusão das duas técnicas periga a língua. Se se associar a isto as mudanças introduzidas pelas redução das mensagens nas redes sociais, a falta do hábito pela leitura e os constantes maus exemplos aí é que temos o caldo entornado.

Com o caos e com a facultatividade na língua devido ao acordo em vigor a língua portuguesa transformou-se num parque de diversões gramaticais. As regras, antes rígidas como um general prussiano, agora são flexíveis como um praticante de ioga. A facultatividade é a palavra de ordem. Quer usar o hífen? Use. Não quer? Não use. Quer acentuar? Acentue. Não quer? Não acentue. Afinal, a língua é apenas um instrumento de expressão, uma ferramenta maleável nas nossas mãos. Mas é nessa indefinição que a língua morre, ou para outros, renasce com as nuances próprias da imaginação de um povo.

A gravidade da situação está a sugerir que os alunos universitários em Portugal, antes de iniciar os seus cursos, tenham cursos de reciclagem da língua portuguesa. Seis meses de curso para os libertar enquanto reféns de uma conspiração gramatical e evitar tropeços nas armadilhas ortográficas. Nos cursos, haveremos de tomar de assalto a língua portuguesa mesclando-a com infusões de kimbundu e umbundu, e também com um pouco da nossa capacidade inventiva de moldar a língua.

Sempre em movimento, a língua portuguesa é viva, mutante, imprevisível. Imprevisível é também o que será da língua violentada pelo desconhecimento, pelo estrangeirismo e pelo rumo que o ensino toma.