Jurando garantias de que não se está a preparar para instalar uma ditadura no país, Kais Saied tem, no entanto, dado sinais contrários a isso num país onde a democracia é frágil depois de 10 anos de sobressaltos após o derrube de Ben Ali, que governou com dureza a Tunísia de 1958 a 2010, ano em que a "Primavera árabe" chegou às ruas de Túnis.

Por detrás da suspensão da Assembleia dos Representantes do Povo (Parlamento), a 25 de Julho, da destituição do Governo de Mechichi e agora da detenção de deputados por não concordarem com a colocação da democracia tunisina em "stand by", está, avançou Saied, a urgência de encontrar soluções para a severa crise económica que se instalou no país e ao caos gerado pela Covid-19, exponenciada pela falha de oxigénio generalizada nos hospitais das principais cidades tunisinas.

Porém, ao contrário dos derradeiros dias do ditador Ben Ali, Kais Saied conta, pelo menos tendo em conta os milhares de pessoas que vieram para a rua manifestá-lo, com um alargado apoio popular - o próprio se juntou aos seus apoiantes nas ruas - suportado pela urgência de dar solução ao buraco económico em que a Tunísia está e para debelar a crise sanitária gerada pela dispersão incontrolada do Sars CoV-2.

Isto é considerado fundamental por uma população empobrecida e exaurida, farta de casos de corrupção, má governação e incapacidade política de abrir caminhos face às dificuldades globais, que tinha no turismo o seu "petróleo", cujos dividendos eram essenciais para a economia do país e com o advento da pandemia da Covid-19 foi simplesmente reduzido a zero.

A par da suspensão do Parlamento, da destituição do Executivo e da detenção, agora, de um grupo de deputados, Saied decretou ainda um recolher obrigatório nocturno que tem sido adequado no seu horário e que agora está delineado para ser respeitado entre as 22:00 e as 07:00.

Considerado essencial pela população enfurecida com a incompetência demonstrada é o combate à pandemia e a escassa vacinação foi um dos calcanhares de Aquiles de Hisssem Mechichi mas isso pode ser alterado já nos próximos dias com o envio pelos Estados Unidos, como avançam as agências, de um milhão de vacinas para Túnis.

Esse gesto também pode ser visto como um fechar de olhos de Washington - apesar de já ter sido feito um apelo ao regresso da normalidade constitucional - a esta suspensão da democracia na Tunísia, cujo Governo destituído era liderado pelo Movimento Ennahdha, de raiz islâmica, o maior partido tunisino, que se opõe a este "golpe", tendo uma das mais veementes reacções vindo do presidente da Assembleia dos Representantes do Povo Rachid al-Ghannouchi, que, pouco depois da decisão polémica de Saied, lançou severas críticas ao Presidente.

Isto é especialmente relevante porque Rachid al-Gannouchi é o líder e co-fundador Ennahdha, o maior partido da Tunísia e com grande capacidade de mobilização popular entre as camadas mais baixas da sociedade tunisina, ainda fortemente afectadas pela crise dos últimos anos e que é (era) o suporte político do primeiro-ministro Hichem Mechichi.

Para já, e apesar dos sinais contrários, Kais Saied já deixou garantias de que não se vai transformar num ditador e rejeitou todas as acusações de que está a protagonizar um golpe de Estado por etapas, como, de resto, o aponta o facto de ter detido deputados depois de lhes retirar as imunidades próprias do cargo em democracia.

Este pronunciamento de Saied tem, no entanto, uma linha vermelha bem clara que é o prazo de 30 dias para a suspensão do Parlamento, e se a vai respeitar, ou ainda que nomes vai indicar para primeiro-ministro interino e para ministro da Defesa e do Interior.

A par desses "pormenores", está ainda o facto de Kais Saied ter mandado deter jornalistas, incluindo um influente blogger, Yassin Ayari, acusado de ter feito publicações difamatórias do Exército tunisino.

No que diz respeito à reacção da comunidade internacional, este movimento de Saied foi criticado por todos os principais órgãos internacionais, como a ONU, a UA ou a Liga Árabe, que, embora moderadamente, pediu o regresso da norma constitucional.

Mas o que vai acabar por influenciar de forma mais pesada este coro de críticas além-fronteiras é o desenho do "mapa" para a saída desta situação e o regresso da democracia plena, com datas precisas e os passos a dar nesse sentido, como, de resto, sublinhou a Administração norte-americana através do Departamento de Estado.