Neste discurso radical, Saied usou algumas expressões claramente racistas, como, por exemplo, a ideia de que está em curso "um complot" para alterar a "maquilhagem demográfica tunisina", numa alusão directa à urgência de impedir que cresça o número de negros entre a população nacional.

Após este discurso de Kais Saied, há cerca de duas semanas, que desencadeou uma sucessão de detenções, alguns media falam mesmo em centenas de pessoas de origem subsaariana detidas sem justificação pela polícia tunisina, esse ciclo de detenções, na sua maioria arbitrárias, cresceu a ponto de, como relatou a AFP, as embaixadas dos países subsaarianos com as comunidades mais alargadas na Tunísia, como a Costa do Marfim, começaram a ser "invadidas" pelos seus cidadãos nacionais em busca de protecção e de um meio de regressar a casa com medo de serem presas.

O medo cresceu de forma galopante quando o Presidente Saied disse claramente, nesse seu já famoso discurso, estar em curso a orquestração de um plano que visa levar a que a população tunisina passe a ser maioritariamente negra, embora a esmagadora maioria dos media internacionais com jornalistas no país sublinhem não existir nada que permita justificar uma declaração com esta gravidade, claramente xenófoba e com fortes laivos racistas.

As palavras de Saied encaixam perfeitamente na ferrugenta teoria fascista criada pelo francês Renaud Camus, denominada "Grand Remplacement - Grande Substituição", que foi perfilhada pelos supremacistas brancos em todo o mundo e que, na sua génese, apontava para uma alteração programada por algumas elites da natureza racial e cultural europeia com a facilitação da entrada de populações africanas e asiáticas.

Esta teoria foi já sobejamente desmontada por cientistas políticos, demógrafos e sociólogos não tendo qualquer base científica, tendo, no entanto, colhido atenções entre as comunidades xenófobas em várias partes do mundo, com grande incidência nos Estados Unidos da América, onde ocorreram já vários episódios de assassinatos de negros por indivíduos movidos por esta visão do mundo.

Na África magrebina, este tipo de posicionamentos têm aumentando nos últimos anos devido à pressão exercida por milhares de africanos oriundos de regiões subsaarianas que procura chegar à Europa e estão obrigados a atravessar países como a Líbia, a Tunísia, a Argélia ou Marrocos, mas também porque os países do norte do continente são comummente encarados pelos povos mais a sul como o mais parecido com a Europa que existe dentro do continente, procurando ali trabalho, quase sempre em áreas como as pescas ou a agricultura.

A chegada de Kais Saied ao poder, em 2019, através de uma sucessão de iniciativas golpistas - (ver notícias/links em baixo, nesta página), levou a Tunísia para um campo claramente autoritário mas que alguns analistas notam ser uma consequência natural do caos criado com a expulsão do poder do ditador Bem Ali num ambiente de "Primavera Árabe", que nesse ano, 2011, varreu um vasto conjunto de países muçulmanos.

Quem é este novo semi-ditador tunisino?

Kais Saied, de 65 anos, chegou ao poder em 2019 através de umas eleições fortemente contestadas mas com o apoio claro de forças importantes na Tunísia, desde logo as formas militarizadas, e ganhou as eleições num clima de grande insatisfação social, com crescente desemprego, crises na educação e na saúde, aproveitando bem o quase-colapso social no pós-reinado de Bem Ali para desvitalizar a jovem democracia tunisina.

O seu perfil condizia com a ideia de "salvador da Pátria", chamando-lhe mesmo "Robocop", mas a verdade é que este professor reformado de Direito aproveitou esse momento de insegurança nacional para entrar com punho de ferro pelo Parlamento, destituindo-o e exonerando o primeiro-ministro, impondo assim a sua vontade...

Foi conseguindo levar a água ao seu moinho porque a sociedade tunisina estava exangue, sem capacidade de se mobilizar por valores democráticos com o estomago vazio, embora milhares de jovens tenham, na altura, tentado protestar, recebendo de volta cargas policiais violentas, tendo mesmo sido registadas inúmeras mortes e detenções.

Contudo, sendo esse o problema, na visão de vários analistas progressistas tunisino, é que este "ditador com todas as letras" ganhoj a simpatia de uma parte significativa do povo tunisino, exercendo em seu nome um poder à beira de incontestado, formal e informalmente, porque ele mesmo secou, com golpes surpreendentes, inicialmente, depois, apenas novas investidas contra a democracia, o Estado de capacidade institucional de se opor a esta viragem paa o autoritarismo que ainda não é cruel porque tem sido colhido com aceitação pela maioria da população...

O professor de Direito que se esqueceu de cumprir com o... direito vital do povo a decidir em democracia, parece estar a conseguir levar a bom porto o seu plano de afunilar mais e mais os direitos civis na Tunísia, e as suas primeiras vítimas são as comunidades subsaarianas que estão no país em trânsito para atravessar o Mediterrâneo rumo à Europa ou a trabalhar.

Para já, esta postura claramente racista só tem sido contestada por um lado da população mais informada e escolarizada, essencialmente de esquerda, contando com um apoio evidente ou tácito de uma substancial parte da população, quase toda ela pobre e iletrada ou fracamente escolarizada.

Mas os analistas admitem que Kais Saied tem pela frente um desafio que pode ser um travão natural a esta posição radical xenófoba, que é a necessidade que a economia tunisina tem de mão-de-obra subssariana para os seus fortes sectores económicos ligados ao turismo, à agricultura, às pescas, aos têxteis, à indústria transformadora na área dos petróleos, fertilizantes...

Com a economia em transição de uma grande estatização e a exigir um novo rumo para a privatização, que já está em curso, Saied poderá começar a enfrentar a pressão dos novos capitalistas que precisam como de pão para a boca de mão-de-obra barata para se manterem competitivos nestas áreas, onde, nalgumas delas, o país é mais forte competitivamente que alguns europeus, como a Itália, Portugal ou a Grécia, entre outros...