São exaltações periódicas contra os que há muito reclamam. Porém, depois de termos observado e experimentado a intolerância dos dirigentes do MPLA, a crueldade dos agentes de segurança de Estado, dos militares e de outros quantos militantes afoitos, que se aproveitaram do clima de impunidade, resultante de uma comunicação precipitada ao País, após a tragédia, não consentimos os erros que nos atribuem.

Recordar a trajectória dos vencedores é um exercício elucidativo. A deriva direitista, a seu tempo denunciada, não foi travada e, por fim, ganhou. O debate de ideias desapareceu, no sentido literal do termo, e, de seguida, os vencedores estrearam um modelo estranho de sociedade, que prosseguiu com a repressão, os desaparecimentos forçados e manteve, por longo tempo, as cadeias lotadas.

O "27 de Maio" não foi uma revolução genuína, não é novidade, todos sabemos, mas que o povo descontente se manifestou nas ruas, só quem não estava lá não o viu. A imprensa estrangeira reportou, leia-se o semanário português, "O Jornal", de 8 de Junho de 1977. Manuel Beça Múrias, insuspeito jornalista, andou diluído na manifestação popular daquela manhã, e relata: "Estou, portanto, no meio de "nitistas" ou "fraccionistas", mas penso (muito cá para mim) que entre os elementos que obedecem à linha de Nito Alves e José Van-Dúnen, deverá haver por certo, agitadores de direita, procurando tirar partido da situação". E diz mais: "Entretanto do centro da cidade começam a aparecer os primeiros veículos de uma coluna militar.... os primeiros que se me afiguram não são guerrilheiros, mas tropa organizada, muito perfilados.... havendo um cubano - reconhecido pelo quépi - em cada viatura. .... fala-se em muitos mortos." A resposta descomunal esmagou de tal maneira a população que o também jornalista estrangeiro, o cubano Rafael Berástegui, afiançava: "...nas FAPLA, a simpatia por Cuba não mais voltou a ser igual".

É sabido que Agostinho Neto não usou a Rádio Nacional, na manhã do dia 27, para o que quer que fosse, muito menos para manter o diálogo e preservar a vida dos dirigentes que se encontravam desaparecidos. O então Presidente apareceu, sim, na televisão para dar conta dos incidentes e reafirmar a expulsão, do Comité Central do MPLA, de Nito Alves e José Van-Dúnen, mas também dizer que estes: "terão de fazer um grande trabalho de reabilitação para poderem regressar às fileiras do Movimento como dirigentes".

É claro que, para dar oportunidade ao segundo discurso que proferiu, mais para o final da tarde, aconteceu a morte bárbara dos comandantes. Então, o trabalho de reabilitação que alvitrou perdeu o sentido e não concedeu tão pouco o perdão. Desta feita, como deixou de haver lugar para julgamentos, foi o regabofe, prendeu-se, torturou-se e matou-se à vontade, desde 1977 até 1979, tal como aconteceu na Argentina de 1976 a 1983. Houve um número indiscriminado de vítimas? Sim. Quantas? O relatório da Amnistia Internacional (AI), de Dezembro de 1982, adianta o repetido número de 30 mil. Para melhor apuramento, peça-se à AI o suporte da afirmação.

Por isso, dizemos com toda a propriedade: a morte bárbara dos comandantes apenas serviu a direita e a repressão, pelo que importa investigar, com isenção, quem foram os responsáveis. Numa investigação, a primeira pergunta que se faz é: quem beneficiou com o crime?

Desconheço o que fazia a articulista no momento do "27 de Maio". Porém, fosse mera observadora, empregada de qualquer organismo internacional, jornalista ou mesmo uma espia estrangeira, o seu texto revela uma colossal distracção, quando deixa passar ao lado a matança infame, que se seguiu ao "27 de Maio", e que se prolongou por mais dois anos, cruel e desmesurada. Foi um bafejo da sorte, acredite, não se ter encontrado cara a cara com um dos muitos carrascos, pelo mais trivial dos pretextos e numa qualquer prisão. Aí teria experimentado a ignomínia da violação, do espancamento atroz, dos choques eléctricos, das simulações de fuzilamento e, acaso lhe sobrasse a vida, ainda provaria os restantes "petiscos" do cardápio da repressão. Hoje, constaria da enorme lista dos desaparecidos, ou, acaso tivesse sobrevivido e ainda gozasse de sanidade mental, quiçá dignidade, ano após ano continuaria a pugnar, tal qual o fazemos, pela verdade e pelo fim da impunidade.

Verifico que nem tudo foi feito em cima do joelho, sobrou bom senso à articulista, o que me força a manifestar concordância. "Abram-se os arquivos dos antigos órgãos de segurança"; ora cá está um gesto de lucidez, pois só a procura da verdade acabará com os silêncios.

De 17 a 20 de Julho de 1979, Agostinho Neto foi à Cimeira dos Chefes de Estado e de Governo, que decorreu em Monróvia. Da agenda, preparada por 25 chefes de estado, fazia parte a elaboração de um anteprojecto da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Na ordem de trabalhos, não estavam contemplados os desabafos domésticos, pois, para tal, existem os chamados "corredores", os bastidores onde se praticam os murmúrios. Como, quem vai parar ao mar avia-se em terra, Neto, antes de partir ordenou a extinção da DISA, a instituição que mais violou direitos. Regressou à Pátria e, logo no dia 26 do mesmo mês, discursou para o povo de Menongue, onde se lamentou do mau trabalho da DISA. Aconteceu que outra coisa se havia de esperar, a rapaziada da secreta e não só, ao ouvir o Chefe anunciar, como já o disse, não perder tempo com julgamentos, pôs as garras de fora e, vai daí, prendeu, torturou e matou quem bem entendeu. Havia um descontrolo dos órgãos de Estado e fraqueza das instituições, mas houve tempo e disponibilidade para julgar os mercenários, em 1976, conferindo-lhes todos os direitos de defesa. Por outro lado, estava lá o Bureau Político do MPLA para apagar o fogo, atitude que neste "excesso", como o qualificam, nem sequer tentou. Mas, um crime é sempre um crime, sejam quantos forem os que morrem, e a única maneira de o superar é assumindo-o sem reticências, gesto que ainda não vi acontecer.

A Justiça transicional da União Africana não tem a vocação para intervir nos conflitos internos dos estados que a constituem, apenas sugere directrizes. O conceito de justiça transicional e" um passo necessário, no sentido de assegurar uma evolução de um passado doloroso e dividido, em direcc,a~o a um futuro partilhado e desenvolvido em comum. Porém, o artigo 4.° do Acto Constitutivo da União Africana apela a` resolução pacífica dos conflitos, ao respeito pelo carácter sagrado da vida humana e a` condenação e rejeição da impunidade, sendo que a ali"nea (h) do citado artigo 4.° confere, ainda, enormes poderes a` União Africana para intervir nos seus Estados-Membros, em casos de atrocidades, abusos graves dos direitos humanos, crimes contra a humanidade e genocídio. Então, como nada disto se aplica em Angola, como já foi dito, e porquê o ministro da Justiça e Direitos Humanos aponta o "27 de Maio de 1977", como um cortejo de atentados aos direitos Humanos? Afinal, em que é que ficamos?

Por fim, já tardava em aparecer, de novo o racismo de Nito Alves. Agora, o trabalho de casa, se o houve, foi mal digerido; a leitura do já famoso discurso, proferido pelo ministro da Administração Interna, aquando do encerramento da campanha eleitoral para os órgãos de poder popular em Luanda, foi intencionalmente enviesada. Nito nunca disse que os brancos deviam varrer as ruas; o que pretendeu dizer foi que apenas haveria justiça social quando houvesse igualdade de oportunidades para todos, independentemente da cor da pele, o que implicava haver pessoas brancas e negras nos postos mais elevados e, também, nos lugares mais modestos, como consequência desse princípio.

Volvidos 43 anos, é importante a procura da verdade, saber, naturalmente, o que se passou no fatídico período que se seguiu ao 27 de Maio de 1977. A verdade não admite deturpações, como as dos escritos por AC.

* Sobrevivente do "27 de Maio de 1977"