Multiplicam-se as notícias em torno das chamadas ARC, que se tornaram obrigatórias nalguns Estados, condição de acesso a determinados serviços noutros, recomendadas ou já descartadas nos restantes.

A ideia subjacente a este tipo de software é simples e sedutora. Usando o seu smartphone, cada utilizador deve baixar e instalar a aplicação indicada, mantendo o Bluetooth activado. Depois, nas suas relações sociais, sempre que se aproxima de outra pessoa com a mesma app, os dispositivos trocam identificadores. O aplicativo mantém um registo anónimo de interacções. Se o utilizador vier a ser infectado por SARS-CoV-2, e notificar essa infecção, todos os seus contactos anteriores serão alertados para uma possível exposição ao vírus.

Na China, uma app do género permite às autoridades dizer quem é que pode ir a que lugares. Na capital russa, Moscovo, um serviço semelhante foi desenvolvido para conceder autorizações para sair de casa, através da atribuição de um QR Code.

Em vários países democráticos, os cidadãos foram incentivados a fazer download de soluções próprias, de forma voluntária.

Em Abril, o Governo australiano foi um dos primeiros a integrar uma ARC na sua estratégia de desconfinamento. Um mês depois do lançamento, o serviço tinha reportado um único caso positivo.

Na Europa, em França, após três semanas, a StopCovid alertou apenas 14 pessoas para um possível contacto com um cidadão infectado. Conforme dados do executivo francês, a app foi activada 1,8 milhões de vezes (a França tem pelo menos 67 milhões de habitantes) e desinstalada 460 mil.

Mesmo na pequena Islândia, onde até Maio 40% da população tinha aderido à Ranking C19, os benefícios mantêm-se modestos.

Cabo Verde apresentou, recentemente, a sua Na Nos Mon, certificada pelo Governo como ferramenta nacional de rastreamento.

Para terem utilidade epidemiológica, as ARC exigem utilização elevada - que os especialistas situam nos 40 a 85% da população total de um país - e aviso rápido. Essas duas condições, principalmente a primeira, parecem inatingíveis, mesmo em locais com forte consciência comunitária e grande penetração tecnológica.

Em termos de saúde pública, enquanto ferramentas de adesão voluntária, as apps de rastreamento demonstraram ser ineficazes. Explorar o seu potencial dependeria de um carácter obrigatório, algo que afectaria um conjunto de prerrogativas democráticas de base constitucional.

Apesar de serem apresentadas como anónimas, com garantias da confidencialidade, não é possível salvaguardar em absoluto o não-cruzamento mal-intencionado de informação. Por outro lado, abrir o precedente do rastreio de movimentos, agora em contexto Covid-19, escancara a porta à normalização da narrativa de necessidade de vigilância electrónica, à qual os governos poderão regressar no futuro, por conveniência própria.

O combate à pandemia de coronavírus, o medo associado ao momento que estamos a viver, a excepcionalidade da abordagem que temos permitido, não nos deve fazer perder o foco na proporcionalidade de tudo aquilo que nos pedem ou exigem que façamos. A um sacrifício deve sempre corresponder um ganho efectivo de igual valor. Há linhas vermelhas que não devem ser ultrapassadas, sob pena de se iniciar um caminho sem volta.