As explicações diárias na TV pela equipa directiva da Saúde repetem o estereótipo de informação, quase que um ritual para marcar presença, mas que não deixa de estar eivado de imprecisões e incongruências. Veja-se, ao acaso, o que foi dito a 7 de Agosto : "... registou-se o record de 88 casos..." ,mas adiante refere-se"... 114 positivos à serologia" (donde virá a cifra de 88, sabendo-se que os resultados das 191 amostras por zaragatoa (RT-PCR) anunciados para esse dia não seriam conhecidos antes de, pelo menos, 48 horas depois da colheita?).
Seria necessário um pouco de pedagogia, que parece não se achar que o público merece: os testes da zaragatoa baseiam-se numa tecnologia molecular, mais sofisticada, que identifica o ácido nucleico do vírus, portanto (com alguma limitações) indicam a presença do vírus. Mas, do ponto de vista operacional, têm um inconveniente: não dão informação "na hora", porque os processos laboratoriais ainda demoram 24 a 72 horas (nos EUA já se está a trabalhar com testes "point of care", ou seja, "à cabeceira do doente", que dão resultados em minutos). Os testes serológicos não identificam o vírus, mas os anticorpos que o hospedeiro produziu como reacção à infecção viral.
Portanto, são retrospectivos, espelham uma infecção que já ocorreu e pode já não estar activa. Não são utilizados nos correntes programas dos vários países como testes de diagnóstico da doença, pois podem ser falsamente negativos (a pessoa está infectada, mas ainda não desenvolveu anticorpos). A grande vantagem operacional destes testes, colhidos no sangue duma picada dum dedo, é que usam a técnica já generalizada para a dengue e a febre amarela, de demonstrar em segundos se o paciente tem alguma barra no sítio das imunoglobulinas M e G (os anticorpos).
Ora, constata-se que no terreno se está a generalizar entre nós o uso dos testes serológicos para diagnóstico, o que é aceitável, dada a sua rapidez e provavelmente menos custos, podendo valer como uma triagem, mas que não responde cabalmente à dúvida: o vírus está presente, sem anticorpos ainda? Há anticorpos, mas a pessoa já não é infectante? - o que obriga a fazer a zaragatoa para ver se o vírus (ainda) lá está.
Quando numa daquelas informações a titular da pasta, partindo do cálculo baseado nos resultados das serologias, de que 5% dos testados eram serologicamente positivos, afirmou sem pestanejar que um em cada 20 habitantes de Luanda teria sido infectado, não terá feito a apropriada regra três para chegar a 320 mil infectados na população de Luanda, números da ordem dos realmente verificados na África do Sul (!). Aqui abro um parêntesis para deplorar o exagero das notas publicadas nas redes sociais por um conhecido sociólogo, membro da bancada parlamentar, ao afirmar que a Saúde Pública não era matéria para médicos ... (como reitor que foi duma Universidade de Angola, devia ter consultado o programa da respectiva Faculdade de Medicina, aprovado depois da independência, em que, em cada um dos seis anos, há uma disciplina de Saúde Pública). Convenhamos, contudo, que a equipa ministerial, ao expor publicamente as suas ideias, denota alguma fragilidade nessa área: para vermos a prevalência numa população, temos de dispor duma amostra aleatória, ou seja, não seleccionada, e suficientemente representativa, e não uma amostra dos doentes submetidos a testes serológicos, que era selectiva ou de conveniência, respeitando a uma fracção da população - os suspeitos ou contactos de doentes ou infectados - portanto tendendo a inflacionar o número de casos positivos. Para se ter uma ideia dos infectados de Luanda, tem de se escolher uma amostra representativa de idades, sexo, ocupação, morada, nível social, etc., como foi feito recentemente em Portugal e noutros países, retrospectivamente, e considerar prudentemente o apurado, não como taxa de infecção, mas como taxa de imunização (à procura da ilusória imunidade de grupo).
Mas sem adoptarmos uma particular taxa de infecção para Angola, parece claro que o vírus circula com alguma intensidade entre nós, em Luanda, e provavelmente em todas as províncias. Não é pessimismo (se as infecções são tão frequentes, há uma pequena mortalidade relativa e não se deve atemorizar as pessoas com o risco de morte, como feito numa das célebres sessões televisivas - de que morrem relativamente mais pessoas afectadas em Angola que nos outros países, porque as pessoas procuram tarde os médicos... Não! (Outra vez aritmética corrente!): se o denominador - número oficial de infecções confirmadas - for pequeno, por subdiagnóstico, perante o numerador da mortalidade (essa não é subdiagnosticada!), então a percentagem é superior e o perigo de morte aparece elevado.
E o que se sabe, realmente, dos casos reais (não dos estimados) de infecção? Os números oficiais dependem dos testes feitos e dos critérios para os fazer, não se podendo fazer a toda a população. Ainda se testa pouco. Não está bem claro quais têm sido os critérios de testagem: os casos suspeitos? Os contactos? Amostras aleatórias (uma colheita num mercado)? Ou amostras de conveniência (os jornalistas que atendem à conferência, os deputados, os funcionários superiores da administração)? Daí as grandes reservas relativamente aos números anunciados diariamente na TV. Há mais casos encontrados na cidade do asfalto: por se testar menos ou nada nos bairros mais populares ou porque no asfalto se paga o " pecado" de se viajar mais? Ou as duas coisas?
Ainda no terreno, avoluma-se o conflito entre as regras restritivas e autoritárias impostas à população e a capacidade institucional para dar aos cidadãos os meios de as cumprirem. Geram-se sucessivamente bloqueios, insatisfação e instala-se a consequência fatal de todas as administrações inoperantes: fuga ao cumprimento e corrupção: as centenas de camionistas imobilizados à entrada de Luanda à espera dum teste vão, segundo a gíria, "pagando a portagem". Os executores das normas, soubemos há dias, perante um doente identificado numa empresa de Luanda, foram lestos a cobrar algumas centenas de milhar de kwanzas (sim, centenas de milhar!), para, supostamente, desinfestar as dependências, mas só alguns dias depois vieram fazer o teste (serológico) aos contactos (manteve-se ainda a eventual cadeia de transmissão por mais uns dias...). Na sequência, tendo-se encontrado alguns casos positivos, "esquecerem-se" de que eles deviam ter contactos em casa...
Finalmente, aceita-se o confinamento domiciliar, mas impõe-se... " obrigação de quarentena domiciliar para quem coabite..." Portanto, cria-se uma nova entidade:" quarentena familiar", ou seja, de toda a família (a não ser que seja esta que vai para o Hotel ou para o Calombo...). O que ganharam as pessoas, as famílias ou o País com isto? E que dizer do cidadão que se queixa da condição, imposta pelo Estado, de controlo da sua saúde, estando em casa, e recebe depois uma factura duma Clínica privada pela assistência prestada?
Assistimos realmente ao acumular de erros duma abordagem para o controlo desta epidemia, que tem imobilizado o País e acentuado o seu isolamento, e que alienou os órgãos naturais do Serviço Nacional de Saúde, cuja fragilidade não foi minimamente reforçada com as medidas tomadas nos últimos 6 meses.
A epidemia tem de ser encarada como uma realidade com que temos de lidar nos próximos meses, procurando, portanto, viver " o mais normal possível", ainda que mantendo as medidas de distanciamento e protecção das vias respiratórias, desinfecção das mãos, protecção rigorosa dos profissionais de Saúde. E aqui, sim, as autoridades devem intervir positivamente disponibilizando os meios de protecção gratuitamente a toda a população.
"Viver normal", neste contexto, significa viver sem demasiada ansiedade, aceitando a lei natural do fim da vida, que a doença abala muito menos do que ao que, erradamente, as pessoas são induzidas (excepto para alguns grupos de risco de que eu, sem angústias, faço parte...).
E levando a administração a abandonar as práticas que dificultam a ligação das várias partes do País, asfixiam a sua produção alimentar e a sua economia, e restringem, sem razão, as relações com o resto do mundo.