O mundo vive um desde Dezembro um problema comum, que afecta de forma indiscriminada todos os países, que não respeita ideologias, nem crenças, nobres, ditadores, doutores ou mendigos. O mundo fechou as portas e ninguém entra nem sai. E foi neste momento de dor e de grande expectativa que vi os pobres em Angola a terem um estatuto que não fosse desenhado para fins eleitoralistas.

A Covid-19 apontou holofotes para o drama dos meninos de rua - que, depois da saída da Dra. Eufrazina Maiato, perderam toda a generosidade - e foi encontrada forma de incluir, em Luanda, 2000 adolescentes em sítios com segurança e os mínimos olímpicos da dignidade humana, não sendo ainda as condições ideais, mas queremos que este programa se generalize a todas as províncias e que nunca mais nenhum adolescente coma do contentor do lixo ou viva num buraco. Temos que vigiar para que depois de passar a pandemia estas crianças e adolescentes nunca mais voltem para a rua e se tornem úteis em todos os sentidos, para poderem depois ser auto-suficientes.

A Covid-19 permitiu que o governo reconhecesse que afinal os pobres não têm água em suas casas e que o custo diário feito pela compra de baldes, bacias ou bidões era absolutamente revoltante depois de termos gastado "triliões" em barragens e do programa de "água para todos" ter sido afinal só para alguns, pois a maioria da população não tem acesso à água potável trazida à sua casa por uma rede canalizada. A pandemia permitiu que se distribuíssem milhões de litros todos os dias nos bairros "secos" e com isso aliviar o peso desta despesa diária. Convém lembrar que esta "água para todos" não chega às maternidades, a muitos hospitais, às escolas e aos mercados, nem a muitas centralidades. Nenhum país se desenvolve com camiões-cisterna. Devemos exigir que este seja o primeiro passo para que o programa de "água para todos" deixe de ser uma esmola e passe a ser um imperativo que um país que vende petróleo terá que honrar como uma prioridade, não estando sequer a inventar a roda, pois os romanos já tinham água canalizada e saneamento há 2000 anos.

A Covid-19 permitiu que o Governo deixasse aqueles programas defeituosos, que nunca foram sequer avaliados, pois não foram concebidos para resolver problemas mas para ganhar votos (Poupa lá, Presild, Maçaroca, Bué, entre outros de igual perda de recursos), e decidiu criar um programa de transferência directa a famílias mais pobres, os tais que vivem abaixo daquela linha de pobreza que nunca foi reconhecida e que vivem com menos de 2 USD por dia. Vamos lutar para que este mecanismo de segurança social se mantenha, se amplie e seja capaz de aumentar a sua dotação individual a estas famílias porque não podemos continuar a aceitar que todos os anos centenas de crianças morram de fome num país que desperdiça dinheiro e ninguém é responsabilizado.

A Covid-19 mostrou que a maioria da população não tem uma casa condigna, e por isso não pôde respeitar devidamente a quarentena porque o sol debaixo das chapas de zinco ou o número elevado de habitantes por metro quadrado, aliados ao facto de a maioria da população viver do mercado informal vendendo de dia para jantar, pondo o Estado de Emergência em causa. A Constituição angolana define como direito o acesso a uma habitação condigna, o que nunca foi respeitado, atendido ou sequer tornado abrangente. E não me falem nas centralidades que não incluem pobres, miseráveis, nem desempregados. Também, aqui o modelo de governação tem que ser repensado. Uma pessoa sem um tecto condigno nunca será um cidadão produtivo e nunca poderá tomar conta de si ou da sua família. Apenas sobrevive. Por isso, como Direito elementar a questão da habitação social nunca mais deve ser tornada num negócio mafioso, mas sim ser tratada com a eficácia que é exigida para deixarmos de ter dois países.

A Covid-19 destapou uma realidade que a governação ignora faz anos. O estado calamitoso dos hospitais, a precariedade do número de técnicos de saúde e de médicos, a falta de fábricas que produzam material hospitalar, medicamentos, entre outras exigências matando de vez a "micha" do negócio da importação de tudo o que uma unidade de saúde consome, do algodão, gaze, álcool, adesivo, medicamentos, seringas, máscaras, entre outros, para não falar de equipamentos. A maioria do povo só tem o hospital público e este tem que ser tão eficaz, tão financiado e tão respeitado como são as unidades de referência para onde se dirige quem tem dinheiro quando viaja para fazer consultas no estrangeiro por causa da insuficiência doméstica. Nunca mais nenhuma obra milionária míope e que apenas tem como objectivo enriquecer pessoas desonestas se coloque à frente da integridade, segurança e saúde do povo angolano.

A Covid-19 cortou algumas das gorduras do aparelho governativo. Não basta diminuir ministérios. É imperativo cuidar da qualidade da prestação do servidor público, das suas viagens feitas até à exaustão, dos carros, das juntas médicas, do papel de muitos membros do governo que são parte interessada em muitos negócios de Estado. É imperativo cortar despesas na Defesa e na Presidência. O que o Estado gasta na importação da cesta básica, que era possível produzir localmente, é uma vergonha. É imperativo, igualmente, que as pessoas, programas, instituições e prioridades sejam constantemente avaliadas para evitar o abuso, o despropósito, a irracionalidade e a banga.

A Covid-19 salvou o velho Beiral, esquecido no intervalo dos votos, onde vivem dezenas de mais-velhos (dos poucos que ainda nos restam) sem nenhuma dignidade, com fome, doentes, sem afectos e em instalações tão precárias que ninguém naquela idade merece. Honrar os velhos não é piedade. Honrar os velhos é um DEVER de uma sociedade sadia e agradecida, coisa que não conseguimos ser. As pessoas foram instaladas com dignidade, em camas com colchões limpos, num espaço com comodidade, o que é agradável. Devemos vigiar as obras de todos os "Beirais" deste país para que não nos fintem.

A Covid-19 trouxe a Telescola, que, não obstante alguns erros, pode ser trabalhada, melhorada e transformar-se numa solução muito eficaz para colmatar insuficiências de professores e escolas. Recorde-se que em 2017 tinham ficado de fora do sistema mais de 2 milhões de crianças. Não nos podemos esquecer que todos os anos nascem mais de 1 milhão de novos filhos e a capacidade de intervenção do governo não tem incluído este importante facto na previsão da oferta de serviços sociais.

Podia enumerar outras boas práticas nascidas neste tempo de pandemia, mas penso que estas são suficientemente elucidativas para demonstrar o tempo que perdemos. Devemos todos exigir que nunca mais nenhuma despesa imoral seja feita enquanto os problemas básicos de todo o povo angolano não forem definitivamente resolvidos. Para isto, temos que repensar o papel das funções do Estado. Que tipo de Estado merecemos exigir? Não podemos aceitar a defesa do retorno ao Estado mínimo com a desculpa de que o povo se safa e cai sempre de pé. Não podemos continuar a perder gerações. Não podemos continuar a aceitar que as promessas não sejam devidamente cobradas. Tem que existir um limite para os erros cometidos. Depois da Covid-19, o mundo não será o mesmo e Angola também não.

O Papa Francisco disse: "Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça com desigualdade". Teremos que aproveitar esta oportunidade para construir um novo modelo de governação em que as causas inadiáveis sejam as que são em nome do povo e a política resolva de facto os problemas e não seja uma simples curita. Ficou provado que já não nos fazem falta ideologias ou novos credos. Fazem, sim, muita falta políticas construídas e implementadas com bondade, humildade e ética que sejam capazes de construir segurança alimentar, saúde e escola públicas de qualidade, eficiência, dignidade, emprego e um país onde cada um fortaleça o sentimento de pertença, patriotismo e amor pelo próximo. O nosso maior drama é que não temos problemas novos. Estamos enrolados nos velhos problemas há 40 anos. E isso comprova a falta de desenvolvimento.