Na capital portuguesa, aconteceu a maior manifestação anti-racismo da História de Portugal, num percurso de cerca de cinco quilómetros, da Alameda à simbólica Praça do Comércio, onde funcionou a Alfândega de Lisboa, de que fazia parte a Casa dos Escravos, onde desembarcavam escravos africanos, a partir do século XVI, constituindo ali um dos principais mercados afins.

Os manifestantes empunharam cartazes e gritaram palavras de ordem, condenando o racismo estrutural, institucional, da sociedade portuguesa e protestaram contra o bárbaro assassinato policial do afro-americano George Floyd.

Denunciaram, igualmente, a violência policial contra negros e exigiram justiça para as vítimas de racismo em Portugal, como o estudante cabo-verdiano Luís Giovanni, assassinado em Dezembro de 2019, em Bragança, e a angolana Claúdia Simões, violentamente agredida, em Janeiro último, pela Polícia portuguesa, nos arredores de Lisboa.

As manifestações, que causaram reacções diversas aos partidos políticos de esquerda e de direita, foram convocadas por movimentos anti-racistas, apenas através das redes sociais, perante o alheamento dos media tradicionais, muito entretidos com mergulhos no mar de Marcelo Rebelo de Sousa, a lembrar as historietas fúteis dos livrinhos "Anita na Praia", "Anita no Campo"...

Nas reacções, uma certa esquerda, que se demitiu, há muito, do papel de trazer para o debate, para o centro da política, a discriminação racial, sentiu-se ultrapassada com a gigantesca mobilização e as reivindicações dos manifestantes, por igualdade racial, uma velha questão há muito reclamada pelas comunidades racializadas.

Por outro lado, a direita e a sua extrema, dando continuidade à narrativa salazarista, fizeram o costume: defenderam a interpretação da história da mesma maneira que a colonização, batendo-se, dessa forma, pela preservação dos seculares privilégios epidérmicos brancos.

Ignorando a raiz do racismo, nomeadamente a escravatura e o colonialismo, de que Portugal é um dos pais, o presidente do Partido Social-Democrata (PSD), Rui Rio, foi à televisão, dois dias depois e, em entrevista, protestou contra a manifestação.

Ao seu jeito, o actual líder do PSD disse que "em Portugal, não há racismo", querendo, com isto, transformar a nação dos brandos brancos costumes em País das Maravilhas.

E vai mais longe, avisando que, se fosse primeiro-ministro, não teria autorizado a manifestação anti-racismo em Portugal, entre outros, porque, com isso, "ainda ficamos racistas".

Este Rio, que, de acordo com todas as sondagens, não desaguará em S. Bento, não quis deixar os créditos do negacionismo, exclusivamente às mãos da extrema-direita e, vai daí, repete as declarações de André Ventura, parecendo, ambos, duas faces da mesma moeda.

Note-se que Rui Rio lidera um partido que fez história em matéria de apoio à segregação racial e que, tudo indica, quer continuar por esse caminho.

De recordar que foi de um líder do PSD, Cavaco Silva, nas vestes de primeiro-ministro, a decisão do voto português na ONU, em 1987, contra a libertação imediata de Nelson Mandela, preso por lutar contra a segregação racial na sua África do Sul, quando o Apartheid, o mais hediondo regime racista deste tempo, já dava sinais de agonia final.

Nessa altura, Cavaco Silva estabelece uma clara aliança com os EUA, de Ronald Reagan, e com a Inglaterra, de Margareth Thatcher, como membro da troika avançada do suporte ao regime racista do Apartheid, na África do Sul.

Dois anos depois, em 1989, o mesmo PSD, ainda no Poder, viria a votar contra uma resolução das Nações Unidas de apoio às crianças vítimas do mesmo sistema racista do Apartheid na África do Sul.

Com essa entrevista, em vésperas do Dia de Portugal, Rui Rio quis, objectivamente, ser fiel à matriz do seu partido e ficar mais próximo das declarações de Cavaco Silva que, por ocasião dessa data, em 2008, afirmou: "Tenho que sublinhar, acima de tudo, a raça, o dia da raça (a sua, obviamente), o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas", recuperando e reafirmando a terminologia racista e segregadora do Estado Novo.

Quando o então Chefe de Estado, Cavaco Silva, o mais profissional dos políticos portugueses, fez tais declarações, Rui Rio era presidente da Câmara Municipal do Porto e, com o seu silêncio tacitamente cúmplice, mostrou o seu alinhamento.

Estaria Rui Rio com a sua narrativa dominante e assimétrica a olhar para um nicho de eleitorado que vai alimentando a parte extrema da direita, ameaçando o PSD e a sua sobrevivência como líder da oposição?

Se Rio vivesse no país real, talvez percebesse as gritantes desigualdades que os negros portugueses, uma considerada faixa da população portuguesa, enfrentam no acesso aos bens e recursos da sociedade, resultado dessa relação assimétrica entre portugueses brancos e portugueses negros.

(Leia este artigo na íntegra na edição semanal do Novo Jornal, nas bancas, ou através de assinatura digital, disponível aqui https://leitor.novavaga.co.ao e pagável no Multicaixa)