Naquela manhã de fim de Agosto, migrantes africanos dançavam em roda e cantavam em coro. Apitos na boca tipo Carnaval na marginal, garrafões de plástico feitos batuques e garrafas de água cheias de pedras a marcar o ritmo, como chocalhos. Um cartaz em português exige: "Liberta Migrantes África". Uns vinte soldados observam-nos. Apoiam-se em escudos altos e transparentes na entrada da Estação Migratória Século XXI em Tapachula, sul do México. Os cânticos às portas do maior centro de migrantes da América Latina são de protesto. Os africanos estão retidos na cidade fronteiriça há meses. Exigem agora um salvo-conduto para chegar à fronteira com os Estados Unidos.

O que até metade do ano passado era um ponto mais no caminho para os EUA, e por onde os angolanos Luzia, Ana e João passaram sem grandes problemas, é agora uma prisão, acusam os africanos. A pressão que colapsou a cinzenta Tapachula veio do norte. No início de Junho de 2019, Donald Trump ameaçou aumentar as taxas sobre as importações de produtos mexicanos caso o governo de López Obrador não detivesse as ondas migratórias que cruzavam este país latino-americano. O sinal de alarme ecoou, estridente, e a reacção foi rápida. Em poucos dias, 20 mil soldados da Guarda Nacional chegavam a Chiapas para criar um tampão anti-migrante ao longo da fronteira sul mexicana.

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Desde então, os vistos de residência no México a que os solicitantes de asilo têm direito não os deixam transitar pelo país, encerram-nos na região de Tapachula. A gota gorda que derramou o copo cairia a 10 de Julho último, quando o Instituto Nacional de Migração (INM) mexicano deu um golpe fatal nos valiosos "Ofícios de Saída". Os "novos" salvo-condutos que autorizam os migrantes a deixar o México proíbem-nos agora de viajar para a fronteira com os EUA e mandam-nos de volta por onde vieram: a Guatemala.

Activistas e juristas dizem que a restrição de movimentos viola a própria Lei de Migração mexicana, mas as autoridades continuam firmes. "Penso que estão à espera que Trump perca as eleições deste ano, para então liberar os migrantes", opina Luis García, da associação Dignificação Humana. Certo ou não, a jogada desatou o caos.

A fuga

Já ninguém canta nem dança em Tapachula. No início de Outubro do ano passado, três corpos deram à costa nas praias de Puerto Arista e de La Isla, no Pacífico mexicano. O barco onde seguiam 22 migrantes dos Camarões naufragou quando tentava contornar por mar os controlos da Guarda Nacional em terra. O acidente na "Rota da Morte" expôs a operação de redes de tráfico que "cobram entre 1.500 e 9 mil dólares por migrante para tirá-los de Tapachula por mar, terra e até de avião, com o conluio dos funcionários migratórios", acusa Luis García. O activista lança um alerta vermelho: "Os angolanos e africanos de Tapachula estão a desaparecer do dia para a noite, sem deixar rasto."

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Os que vão ficando "jogam um braço-de-ferro permanente com as autoridades", pontua Wilner Metelus, presidente do Comité Cidadão em Defesa dos Naturalizados e Afro-mexicanos. Na madrugada do domingo 13 Outubro de 2019, dezenas de angolanos e congoleses, sobretudo, desafiaram o cerco de Tapachula e abandonaram a povoação a pé com a Cidade do México na mira. Doze horas e 20 km depois, a caravana foi interceptada pela Guarda Nacional. "O desespero era evidente. Esgotados depois de um dia de caminhada, muitos começaram a chorar", descreve o jornal mexicano Animal Político. "Um angolano que carregava aos ombros o filho de dois anos e que não quis dar o nome" falou por todos: "Migração não nos deixa avançar. Estamos há três meses aqui e não dão soluções. Queremos chegar à capital. Não temos trabalho, estamos a passar muito mal".

As associações de defesa de migrantes estimam que há entre 3 e 4 mil africanos retidos em Tapachula, a maioria camaroneses. A Embaixada de Angola nos Estados Unidos, que cobre em simultâneo o México, confirmou ao NJ que há também angolanos, viajantes da rota que começa no Equador. Só no ano passado, contabiliza, passaram pela fronteira sul mexicana 851 cidadãos nacionais. Os números baseiam-se nos relatórios que o INM envia à representação diplomática angolana em Washington (ver caixa "A migração de angolanos no México em números"). A embaixada comentou também a este semanário que está agora a trabalhar com o Ministério das Relações Exteriores, em Luanda, para confirmar a identidade e nacionalidade dos migrantes que se declaram como angolanos e que estão barrados em Chiapas. O objetivo é abrir passo à deportação dos cidadãos nacionais e regressá-los a Angola, uma tarefa que o México quer pôr em marcha a curto prazo.

As ameaças de deportação dos chamados migrantes extra-continentais têm vindo a subir de tom. Em Outubro do ano passado, o Comissário Nacional do INM, instituição à qual o NJ pediu comentários sobre a situação actual, sem sucesso, atirou: "Podem vir até de Marte, mas vamos mandá-los todos para a Índia, para os Camarões, até África!" Francisco Garduño alçava, assim, a voz contra os migrantes asiáticos e contra aqueles a quem chamou simplesmente de "humanos de raça negra". Africanos, portanto. No México, choveram as acusações de racismo. Dias depois, Garduño pediu desculpas.

A espera

Antes do furacão Trump arrasar os planos dos migrantes que passam por Tapachula, já o lugar era um caos. A enxurrada repentina de africanos, asiáticos, haitianos e cubanos colapsara a capacidade de resposta do INM e da Comissão Mexicana de Ajuda a Refugiados (Comar). Quando visitámos a cidade em Junho de 2019, centenas de pessoas esperavam nas ruas mal-amanhadas por asilo político ou pelo salvo-conduto para seguir viagem. Nessa altura, a porta do norte ainda estava aberta.

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Africanos e asiáticos enchiam pensões e hotéis, compravam telemóveis, chips, roupas, bugigangas e alimentavam negócios de comida adaptada aos gostos dos estrangeiros. Num esquema de comissões, habitantes de Tapachula levantavam a nome dos migrantes indocumentados dinheiro que os familiares dos viajantes enviavam através dos sistemas de transferência internacionais. Com dólares no bolso, os ilegais moviam uma cidade que agora os olha de lado. "A imprensa local começou a acusar os africanos de trazer SIDA, de espalhar doenças, lixo e violência e isso está a criar uma tensão social muito grande", testemunha Irineo Mujica, de Pueblos Sin Fronteras. À sombra do enorme vulcão Tacaná, a cidadezinha com bafo quente e húmido, pastoso, espuma de impaciência.

Indiferentes aos humores locais, na tarde desta segunda-feira, 10 de Junho, os angolanos Ana e João, que acompanhamos desde o Equador, voltam a tentar a sua sorte na Estação Migratória Século XXI. Desde que chegaram da Guatemala, lutam por começar o processo de regularização para seguir viagem. "Há duas semanas que venho aqui todos os dias para nos registarem e dar o salvo-conduto para ir para o norte, mas só nos dão voltas, nem sequer nos falam", queixa-se Ana. Senta-se no chão e encosta-se a uma grade onde outras mulheres africanas formam uma fila espontânea e inútil.

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A espera é longa e o sol é infernal. Uns poucos africanos, cubanos e haitianos deambulam por ali. Debaixo de umas árvores, um grupo de seis ou sete homens indianos ouve música frenética estilo Bollywood numa pequena coluna. Esperam com olhos esbugalhados. A chegada de autocarros dissolve por segundos o tédio. Entram vazios na Estação Migratória, saem cheios. "São centro-americanos que vão deportar", diz João. Chegam cheios, saem vazios. "São centro-americanos que apanharam no caminho", garante o angolano de quem perdemos o rasto nesse dia.

Ana despede-se, por hoje já chega de esperar. Vai com a filha de sete anos e com o marido para uma pensão no centro. "Às vezes dormimos na rua, porque já não temos muito dinheiro, mas quando chove não podemos ficar aqui com a criança", justifica. Olho o céu, não há nuvens. Horas depois, entendo que em Tapachula a chuva é coisa de fim de tarde. Cai forte e quente.

Um álbum de horrores

Ainda antes do aguaceiro, enquanto Ana se afasta, aparece na Estação Século XXI Favour (nome fictício), com o companheiro. Os dois migrantes camaroneses acabaram de chegar de Ciudad Hidalgo, na fronteira com Tecún Umán, Guatemala. Vem débil. Mandam-na directamente para o Centro de Saúde de Tapachula. Favour tosse sem parar.

O hospital onde os africanos acodem quando a saúde é precária é um edifício com paredes de tinta branca descascada a poucos minutos do centro. A sala de espera é um forno-ninho de mosquitos. No tecto há três ventoinhas, só uma dá voltas a contragosto. Cartazes alertam para os sintomas de dengue e paludismo. Favour senta-se no fim de uma fila de cadeiras de plástico azul, junto a uma corrente de ar.

Desfia lentamente um terço que traz ao pescoço. As unhas das mãos estão pintadas de branco com pontinhos pretos. "Venho de Buéa, fica na parte anglófona dos Camarões. Queres ver como é?" Tira o telemóvel do bolso e desfolha um álbum de destruição: casas com vidros partidos, edifícios queimados ("este era o hospital"), estilhaços, soldados, corpos ensanguentados e cadáveres apilhados. "Assim estão as coisas por lá", atira, como preâmbulo da sua tragédia pessoal. "Os militares queimaram a casa dos meus pais e dos meus avós com eles lá dentro, vivos. Chegaram ao meu salão de pédicure e obrigaram-me a ver como violavam as minhas irmãs. Depois abusaram de mim, eu estava grávida de quatro meses". Começa a chorar. "Nesse dia levaram o meu filho de 17 anos, há quatro meses que não sei nada dele".

Favour e outros camaroneses com quem falámos fogem de um conflito que começou em 2016 e que opõe separatistas da região anglófona dos Camarões ao governo. Centenas de pessoas foram mortas desde então. Segundo a ONU, até Março de 2019, 440 mil camaroneses fugiram da região. No México, são o grupo mais numeroso de africanos indocumentados. Misturam-se com congoleses, angolanos e tantos outros vindos de várias partes de África.

No centro médico, a espera termina. Uma médica manda Favour entrar num pequeno consultório, mas não se entendem. A dificuldade de comunicação dos africanos é problema recorrente ao longo da rota. Pedem-me para traduzir. Como condição para continuar a consulta, exigem-lhe uma declaração de refúgio da Comar, que ela não tem. Entrega o salvo-conduto que lhe deram na Costa Rica, foi o único documento que conseguiu salvar quando lhe roubaram a carteira nas Honduras. A médica confunde (ou finge confundir) o papel e prossegue.

Num computador velho digita o nome, idade e proveniência de Favour com um só dedo, tecla por tecla, "vai-me dizendo o que tens". A jovem conta então que contraiu uma infecção ao cruzar a selva do Darién, no Panamá, e que tiveram de lhe "tirar o bebé" para salvar-lhe a vida. Ao passar pela Guatemala, a costura da operação começou a abrir-se e agora dói-lhe "toda essa parte". Pesam-na, medem-na, tiram-lhe a tensão. Minutos depois, sai aliviada. É só anemia, uma pequena infecção na garganta e problemas gastrintestinais ligeiros. Na farmácia quase vazia do Centro de Saúde dão-lhe medicamentos grátis. No dia seguinte, encontramo-nos na Estação Século XXI. Sorri, sente-se muito melhor. Para ela a espera só agora começa.

O documento

Ao final dessa noite, já a chuva caía forte em Tapachula, Ana manda-me uma mensagem: "Amanhã vai à Estação [Século XXI] bem cedo, dizem que vão deixar entrar". Na quarta-feira, 12 de Junho, 8 da manhã, o mujimbo confirma-se. Depois de semanas de espera, a polícia migratória abre as portas a duzentas pessoas para se registarem e começarem o processo para obter o salvo-conduto. Mulheres e crianças à frente. Ana já está na fila com a filha, são das primeiras. Bolsa cruzada ao peito, olhar atento, sempre em frente.

Uma pequena porta de tubos de metal azul entreabre-se. Começam os gritos. A fila avança aos empurrões. Dezenas de mulheres apertam-se, tentam furar com os filhos nos braços pela entrada estreita. A polícia migratória não as consegue conter e a confusão agiganta-se de repente. Ana mergulha na onda humana e emerge para tomar ar e avançar de bruços. A fita amarela que traz na cabeça destaca-a. Força a entrada, agita-se, dá cotoveladas, grita, afunda-se novamente e aparece do outro lado do portão sem avisar. Corre com a filha, pequenita, carrapitos na cabeça, para um pátio interior da estação delimitado por grades. Levanta os dois polegares e sorri. Duas horas depois, mais coisa menos coisa, aparece no átrio da Estação Migratória. "Consegui registar a família toda".

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Não sabemos ao certo o que aconteceu a Ana e à família depois dessa quarta-feira. Dez dias mais tarde, ainda não tinham entrado no albergue da Migração, onde deveriam ficar uma ou duas semanas até receber o salvo-conduto, conforme o processo de então do INM. "Eles falaram para nós entrar próximo mês", escreve numa mensagem a 20 de Junho. Foi o último contacto. Nas três semanas seguintes, viu as mensagens que enviámos mas já não respondeu. Às 11.12 da manhã de 15 de Julho esteve pela última vez em linha. O perfil de WhatsApp do número angolano já foi desactivado. As mensagens não entram. A fotografia sorridente que tirou em Luanda desapareceu, é agora um ícone vazio.

Entretanto, no final de Julho do ano passado o NJ conseguiu falar novamente com Gbono Washington, um migrante liberiano que morou em Angola por mais de 10 anos e que também conhecemos em Tapachula. Estava já em Tijuana à espera de cruzar. "A Ana e a família estão contigo?" "Não, eles foram com os outros angolanos para Ciudad Acuña, separámo-nos no caminho e já não soube mais nada", lamenta.

Seguimos a pista até ao estado de Coahuíla, no noroeste do México, onde as vizinhas Ciudad Acuña e Piedras Negras encaram o Texas lá no outro lado do Rio Bravo. O Padre José Valdez é o responsável pelos únicos albergues que aí existem. "Entre Julho e Agosto [de 2019], tivemos muita gente de Angola, muitas famílias vêm por esta fronteira, porque é mais segura do que Tijuana", comenta.

Damos os nomes verdadeiros de Ana e da filha. Horas depois responde. "Não estão nos nossos registos, não passaram pelos albergues." O "Padre Pepe", como é conhecido, arrisca um desfecho possível: "Todos os migrantes que passam legalmente por Ciudad Acuña vêm primeiro à Casa Migrante. Se ela realmente esteve nesta fronteira, então entrou como ilegal nos Estados Unidos pelo Rio Bravo." "Em Julho", relembra, "uns 50 africanos atravessaram por ali, mas é perigoso, muitos têm-se afogados no rio".

No final de Janeiro, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) classificou a fronteira entre o México e os Estados Unidos como a mais perigosa do continente para os migrantes. A organização do sistema das Nações Unidas estima que, em 2019, morreram ao longo dessa linha 497 pessoas - 109 afogaram-se ao tentar cruzar o Rio Bravo; as restantes perderam a vida, derrotadas pelo sol escaldante do deserto do Arizona e de outras zonas remotas da região.

O cenário é grave, mas ainda antes da chegada à fronteira, há uma outra tragédia anunciada para muitos migrantes. Nos últimos anos, mais de 70 mil pessoas desapareceram quando cruzavam o México em direcção ao limite com os EUA, segundo as contas de associações de direitos humanos. Muitos são assaltados nos autocarros em que viajam. Outros são raptados e até mortos pelo crime organizado. Ainda hoje, os mexicanos arrepiam-se com o chamado "Massacre de San Fernando", localidade do estado fronteiriço de Tamaulipas, onde, em 2010, o grupo de narcotraficantes "Los Zetas" massacrou 72 migrantes que se negaram a unir às suas fileiras. As estatísticas impressionam, mas contabilizam apenas centro-americanos. Nesta travessia pelo México, os africanos continuam invisíveis.

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A migração de angolanos no México em números

As estatísticas mais recentes do Instituto Nacional de Migração (INM) mexicano destapam: desde 2008, passaram pelo México 1163 migrantes que se declararam angolanos. A partir de 2014, o fluxo foi contínuo. Acelerou em 2016 e não parou mais de crescer. Em 2019, bateu um novo recorde. Só nos primeiros onze meses, as autoridades mexicanas registaram 851 angolanos (ainda não estão disponíveis os números de Dezembro). Representam 82% do total de cidadãos nacionais que aqui chegaram nos últimos 12 anos. A grande maioria entrou por Tapachula. Outros, por pontos menos vigiados, numa tentativa de esquivar a Guarda Nacional. Os números não incluem os que conseguiram fugir ao controlo do INM. Também não têm em conta os filhos de angolanos que nasceram no Brasil, onde muitos começam a viagem. Embora sejam registadas como brasileiras, estas crianças são, por lei, também elas angolanas.

Escondidos nos números, há ainda um alerta: entre os angolanos que chegaram em 2019, quase metade eram menores de idade, um total de 405 crianças e jovens. Destes, 36 viajavam sozinhos - 24 com menos de 12 anos; uma dúzia mais tinha entre 12 e 17. A maioria eram raparigas.

Tendo apenas em conta 2019, os angolanos representam mais de 10% dos 7.201 africanos que chegaram ao México entre Janeiro e Novembro passados. São o terceiro maior grupo, atrás da República Democrática do Congo (25%) e dos Camarões (45%). Eritreia, Gâmbia, Gana e até Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe estão na lista de 35 países de África representados em Tapachula neste período. No conjunto, os africanos representam apenas 4% da migração ilegal para o México.

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A última fronteira

De Tapachula ao norte, quando o norte era coisa de um papel mais ou menos tardado, os migrantes viajavam nos chamados "tijuaneros". Ana e a família cruzaram o país até Ciudad Acuña nestes autocarros nem sempre em boas condições. As viagens até à última fronteira duram entre três e quatro dias.

Num dos Hiaces que saem da Estação Século XXI para o centro de Tapachula, dois migrantes dos Camarões mostram-nos os bilhetes da linha "Estrellas del Sur". O autocarro para Tijuana sai às 14h30m. "Temos família nos EUA e vamos pedir asilo", conta um deles ao NJ, com o valioso "Ofício de Saída" na mão. Na rádio toca "Hoja en Blanco", sucesso de bachata dos anos 90, na versão reggae de Dread Mar I. A canção é de amor mas cai como uma luva no momento. "E voa, voa / Por outros rumos / Vai e sonha, sonha / Que o mundo é teu". Os africanos não falam espanhol e a mensagem do refrão passa-lhes ao lado. Estão contentes.

Viajam para um lugar que mudou muito nos últimos meses. Tijuana e toda a fronteira norte são a outra haste da tenaz que tenta comprimir os migrantes dentro do México. A cidade voltada para o Pacífico, no extremo noroeste do país, congrega hoje grande parte dos africanos que chegaram ao limite e esperam cruzar. "Não há um número concreto, mas penso que são mais de mil, estão à espera de uma resposta dos Estados Unidos sobre se lhes dão asilo ou não", comenta-nos Sara Sorto, responsável de Espaço Migrante, em Tijuana.

Segundo a activista, "vivem em hotéis ou apartamentos que alugam entre todos" e de onde "quase nunca saem com medo de serem detidos". Sara conta que, "desde que a Guarda Nacional chegou à cidade, começaram as rusgas contra os migrantes, especialmente os de pele negra". "Os militares e os agentes do INM saem à noite pelo centro ou pela zona das praias, pedem-lhes documentos e prendem quem não consegue comprovar que está legal no país, o que neste momento são praticamente todos". Sem "estratégia nenhuma do que fazer em seguida", libertam-nos uns dias depois.

No outro extremo da fronteira norte, dois mil quilómetros a leste de Tijuana, o advogado Jesús de León detona: "Esta espera é uma bomba de tempo". O especialista em questões migratórias e residente em Piedras Negras explica que o processo para entrar nos EUA de forma legal é "complexo" e "parece estar feito para cansar estas pessoas e fazê-las regressar aos seus países por vontade própria."

Os passos são simples, mas "eternos". Quando os migrantes chegam à fronteira, anotam-se numa lista para ser atendidos pela Migração norte-americana, como um sistema de senhas. "Esperam três, quatro meses, às vezes até meio ano" e quando finalmente "a migra gringa" os recebe, marca-lhes uma audiência com um juiz. Uns meses mais tarde, este tribunal decide então quem pode receber asilo e quem vai ser deportado. Durante a longa espera, muitos aguardam em Casas Migrantes no lado mexicano e fazem biscates para subsistir. Nas negociações de Junho do ano passado para evitar os impostos sobre as importações, o México aceitou ser a "sala de espera" dos solicitantes de asilo nos EUA.

Para quem entre ilegalmente, como Ana e a família, provavelmente, o processo é um pouco diferente. "Se a Patrulha Fronteiriça norte-americana os apanha, já não são reenviados para o México, esperam nos centros de detenção nos EUA. Os que têm familiares ou amigos em situação legal naquele país que se responsabilizem por eles, podem esperar em liberdade controlada até ao dia da audiência", explica.

Esta possibilidade tem gerado uma onda de solidariedade dos norte-americanos. Sara Sorto conta-nos que "há pessoas nos EUA que acolhem famílias completas de migrantes, mesmo sem as conhecer, só para evitar que tenham de esperar nesses centros de detenção onde as condições são terríveis".

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Segundo dados que a Patrulha Fronteiriça dos Estados Unidos enviou ao NJ, entre 2014 e 2018, as autoridades daquele país detiveram em vários pontos da fronteira norte-americana apenas nove angolanos ilegais e passíveis de ser deportados. Em 2019, o número disparou para 215. Os EUA confirmam a tendência de aumento exponencial da migração angolana no ano passado, registada também nos outros países ao longo da rota de migração desde o Equador.

Um paraíso em Portland

É em Austin, nos Estados Unidos, e depois de muita viagem, que reencontramos Luzia Banzuzi. Perdemos-lhe o rasto no Panamá, mas ela continuou a viagem pela Costa Rica, Nicarágua, Honduras, Guatemala e México. "Vivo aqui há três meses num albergue e trabalho num hotel", contou-nos na última vez que falámos.

A peça que falta - como chegou aos EUA? - tem-na Olga Sánchez, directora do Albergue Jesús el Buen Pastor, em Tapachula. "Quando Lucy atravessou o rio da Guatemala para o México e chegou à Estação Século XXI, mandaram-na directamente para o hospital. Tinha seis meses de gravidez e estava num estado muito grave de desnutrição e desidratação".

Quando recuperou, alojaram-na no albergue que Olga dirige. "O nosso Emanuel nasceu três meses depois, em Agosto de 2018", diz, orgulhosa. Com um filho mexicano de nascença, Luzia recebeu a residência permanente e trabalhou uns meses como tradutora no DIF (Instituto mexicano de Protecção à Criança) até juntar um dinheiro para o resto da viagem.

No início de 2019, chegou por fim à fronteira de Piedras Negras "de avião", sublinha Olga, onde "pagou a um "pollero" [traficante] para passar". Cruzou o Rio Bravo com o filho nos braços e "foi agarrada pela "migra"". "Ela esteve um tempo num centro de detenção, mas umas pessoas de Angola que já viviam em Austin ajudaram-na a sair, e ela está lá desde essa altura." "É uma mulher de uma coragem extraordinária", descreve Olga com um carinho evidente.

Austin e Houston, no Texas, também Carolina do Norte, Vermont ou Michigan são lugares amigáveis para os migrantes africanos que chegam aos EUA. Mas nos últimos meses, a cidade de Portland, no Maine, é a que mais tem chamado a atenção. Em finais de Junho do ano passado, os holofotes mediáticos viraram-se para este porto no extremo nordeste do país, quando 39 migrantes de Angola e da RDC entraram de repente na cidade, colapsando os centros de acolhimento da região.

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Em conversa com o NJ, o presidente municipal de Portland, Ethan Srimling, comenta que "a maior parte desses africanos estava em processo de pedido de asilo à espera da audiência com o juiz de migração." "Portland é atraente para eles, porque há aqui comunidades angolanas e congolesas com mais de 30 anos, que servem como bases de apoio", explica o "mayor". A "política de braços abertos" que implementou deve-se a "razões humanitárias", diz, mas não só. "O estado do Maine é muito grande e precisamos de trabalhadores e famílias jovens", admite sem rodeios.

"É grande, mesmo muito, muito grande, é enorme!", exclama o angolano Nsiona Nguizan. "Aqui no Maine, para chegar de uma cidade à outra podes andar cinco horas sem parar, e isto em auto-estradas muito boas, não como as nossas de Angola, aqui é mesmo a pisar", reforça.

Nsiona é o líder da Comunidade Angolana do Maine. É de Luanda e vive em Portland há oito anos. Chegou para estudar e acabou por ficar. Pouco a pouco, foi vendo a cidade a abrir as portas a quem chegava "ilegal, vindo do sul", sobretudo a partir de 2015. Nsiona aprofunda as palavras do mayor Ethan Srimling: "Este é um estado envelhecido, e a estratégia do governo passa por convidar estudantes de todo o mundo e trazer migrantes para reactivar a economia local. As empresas privadas formaram um fundo, o "General Assistance", para apoiar durante um ano estas pessoas com casa e outros gastos, com a ideia de que se estabeleçam e sirvam de mão-de-obra". Os resultados estão à vista. "Quando os africanos começaram a chegar", exemplifica, "escolas que estavam fechadas por falta de crianças tiveram de abrir de novo as portas".

Desde que se converteu em líder da comunidade angolana, Nsiona anda "que nem político, com telefonema atrás de telefonema", ri-se. Alguns deles, conta, são "de outras cidades do Maine que estão a lutar para ver quem atrai mais migrantes". "Ligam-me e dizem que querem que os angolanos se estabeleçam lá, mas são lugares muito distantes de Portland, não têm uma base de apoio como aqui", comenta.

Nos últimos dois anos, a Associação de Angolanos do Maine tem ajudado os cidadãos nacionais que chegam a esse estado. "Damos-lhes assessoria legal, ajudamos com as traduções e com informação sobre a comunidade, processos de segurança social, educação ou saúde", afirma Nsiona. No entanto, o jovem considera que "muitas vezes, o mais importante é acolher como família as pessoas que vão chegando". "Eles vêm muito afectados pelo caminho que fizeram por toda a América", testemunha.

Nesta missão de fazê-los sentir-se em casa, não podia faltar a comida. "Muitas crianças não estão habituadas à comida daqui, e por isso temos que lhes cozinhar uma boa fúmbua, uma gimboa, um funge da Banda", conta, divertido. A comida vem do Canadá e é vendida nas lojas da comunidade africana. "Mandioca, ginguba, kizaka, gimboa, fuba, encontras tudo isso aqui no Maine", surpreende.

Passaportes rasgados

A chegada de angolanos a Portland levantou a ponta do véu de um problema que se repete ao longo da rota de migração, desde o Equador até aos Estados Unidos. "Algumas pessoas que estão a chegar agora e que dizem que são angolanas vêm sem passaporte", comenta Nsiona. "Nem sempre temos como provar com certeza absoluta se são ou não cidadãos nacionais".

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A "apropriação de nacionalidade" africana é um problema já conhecido pelas autoridades de vários países, sobretudo entre os haitianos que dizem ser angolanos ou congoleses para evitar a deportação imediata quando chegam ao México. Entre quem lida com os migrantes angolanos nos Estados Unidos, corre também a informação de que cidadãos de outros países africanos que residem em Angola estarão a obter ilegalmente passaportes nacionais em Luanda. A alegada falsificação da identidade cumpre uma lógica: ao identificar-se como angolanos e não como africanos de outros países, pensam conseguir mais facilmente um visto para o Brasil, onde muitos começam esta rota de migração.

Para tentar esclarecer esta situação, Nsiona contactou o consulado-geral de Angola em Nova Iorque. "Mas é uma situação delicada", reconhece. "Por um lado, não podemos comprovar se são angolanos; por outro, não sabemos por que razão os angolanos que estão a pedir asilo tiveram de sair de Angola, não sei como reagiriam se trouxesse aqui os homens do consulado", baliza Nsiona. A Embaixada de Angola em Washington afirma que está a acompanhar a situação.

Portland parece ser um bom final da história, mas para muitos angolanos o caminho ainda não terminou. O Québec está a cinco horas de viagem de carro de Portland. O mayor Ethan Srimling confirma que "muitos dos que chegaram em Junho já se foram embora" para o Canadá. Este também era o objectivo final de Ana e João, os angolanos que conhecemos em Tapachula e que perdemos algures no Rio Bravo.

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Para os angolanos que cruzam o oceano rumo a um inferno desconhecido de selva, mar, morte, pesadelo e sobrevivência, o lugar com que sonham é difuso, talvez imaginário. "Eu quero viver num país livre e Angola está estragada, já não dá. Mas no Canadá tem liberdade", dizia-nos João. Se chegaram ao Quebéc, Ana e João percorreram pouco mais de 35 mil km desde que saíram de Luanda por trilhos a apontar para o norte. É quase uma volta ao mundo.