A gravação em vídeo de uma investida de agentes da PSP, da unidade de intervenção rápida, contra uma família angolana, residente no bairro da Jamaica, gerou uma sucessão de episódios que culminaram com uma nota formal de protesto enviada pela embaixada de Angola em Lisboa ao Governo português.

Esse protesto diplomático, segundo a RNA, foi emitido na segunda-feira, dia em que um grupo de cerca de duas centenas de habitantes do bairro da Jamaica, maioritariamente habitado por cidadãos oriundos de países africanos, com destaque para os de língua portuguesa, se deslocou para Lisboa com a intenção de protestar junto do Ministério da Administração Interna (MAI), que corresponde ao Ministério do Interior em Angola, contra as agressões e contra a detenção de Hortêncio Coxi.

O mesmo Hortêncio Coxi garante, segundo relatou aos jornalistas após a sua libertação pelas autoridades judiciais portuguesas, que nada teve a ver com o episódio, que apenas estava a assistir, que não arremessou pedras contra a patrulha policial e que, além disso, voltou a ser agredido enquanto esteve detido sob acusação de ter sido quem atirou a pedra que feriu um dos agentes na cara.

Entretanto, o grupo que se deslocou do Seixal, na margem sul do rio Tejo, a Lisboa, foi recebido por um alargado efectivo policial, incluindo dezenas de agentes da Unidade Especial de Polícia da PSP, criada para responder a situações de forte desordem pública, com alguns episódios de agressões mútuas, especialmente após ter decorrido o protesto junto do MAI, quando, ao final da tarde, parte do grupo de habitantes do Jamaica optou por prolongar o protesto na Baixa da capital portuguesa.

Junto ao Marquês do Pombal, conhecida praça da capital portuguesa onde são festejadas as vitórias importantes dos clubes de futebol lisboetas, chegaram mesmo a ocorrer cenas de violência e alguns cidadãos foram detidos pela polícia, que, face ao arremesso de pedras, se viu forçada a disparar balas de borracha para o ar.

Foram detidos quatro dos manifestantes, que se mantiveram a gritar palavras de ordem como "abaixo o racismo" ou "basta de violência policial".

A mesma violência que a PSP, segundo a versão dos acontecimentos relatada à imprensa em Lisboa, foi usada de novo quando, procurando libertar uma faixa de rodagem na Av. da Liberdade para permitir abrir de novo esta artéria ao trânsito, os agentes da polícia foram alvejados com o arremesso de pedras, ferindo alguns sem gravidade.

Mas a versão dos manifestantes é outra. O arremesso de pedras só surgiu quando foram ouvidos tiros, o que gerou algum pânico entre os manifestantes, e, numa atitude de defesa, surgiu o arremesso de pedras.

Depois de a situação ter acalmado, já na segunda-feira, noite dentro em Lisboa, fica, como súmula destes dias tensos após as agressões no bairro da Jamaica, o protesto diplomático da embaixada angolana em Portugal, a entrada de um processo judicial da organização anti-racismo SOS Racismo junto do Ministério Público e ainda a ocorrência de queimada de viaturas, caixotes de lixo e, na situação mais grave, um ataque a uma esquadra da PSP.

Carros incendiados, esquadra atacada em Setúbal...

Depois destes episódios, tanto no Jamaica como em Lisboa, foram registados pela PSP novas situações tensas, com o relato de ataques com engenhos explosivos - cocktail molotov - contra uma esquadra da Bela Vista, em Setúbal.

Foi ainda, confirma a PSP, queimada uma viatura e provocados danos no imóvel da PSP, nesta esquadra em Setúbal, uma cidade situada igualmente a sul de Lisboa.

A PSP diz que estes ataques foram perpetrados por um grupo de jovens que ainda não foi identificado.

Tudo indica que este episódio esteja relacionado com as agressões ocorridas no bairro da Jamaica.

Também foram atirados cocktails molotov contra viaturas em Odivelas e na Póvoa de Santo Adrião, cerca das 22:00 de ontem (mais uma em Luanda).

Ainda com o mesmo tipo de engenho explosivo, foram incendiados dezenas de caixotes de lixo e pelo menos cinco viaturas, próximo da Cidade Nova.

Foram identificados quatro jovens como suspeitos da autoria destes "ataques" e um, de 18 anos, acabou detido por ter sido identificado por uma testemunha como autor do arremesso de um cocktail molotov, um engenho constituído por uma garrafa de vidro com gasolina e uma mecha incendiada que garante a explosão ao partir.

A PSP está a reforçar a vigilância nestes locais, especialmente na margem sul do Tejo, de forma a precaver novas investidas do género.

O episódio inicial

Recorde-se que as agressões ocorreram este fim-de-semana, no Domingo de manhã, e, segundo a versão dos acontecimentos relatada pela Polícia de Segurança Pública (PSP), as agressões tiveram como razão inicial o arremesso de pedras por parte de um homem de 32 anos, de naturalidade angolana, aos agentes que se deslocaram ao bairro Jamaica.

Esta versão é, no entanto, desmentida pela família Coxi, que garante que os agentes da PSP já chegaram ao bairro com uma clara predisposição para a agressão sem que sejam conhecidos os motivos.

Para averiguar o que se passou de forma "cabal", o comando da PSP de Lisboa já anunciou que foi aberto um inquérito interno.

Segundo os relatos da imprensa portuguesa, as agressões policiais começaram quando, no Domingo de manhã, no momento em que decorria uma festa familiar de aniversário, surgiram desacatos entre um grupo de mulheres e a polícia foi chamada a intervir, tendo deslocado para este bairro, conhecido pela sua precária situação social, uma patrulha.

Na versão da família, os agentes da PSP, depois de terem ficado dentro dos carros por algum tempo, sem qualquer intervenção face aos desacatos entre os moradores, nem fizeram perguntas e partiram logo para a agressão.

O entendimento da polícia é outro: a patrulha foi simplesmente recebida com o arremesso de pedras e que a força utilizada foi a "estritamente necessária" para lidar com a situação com que os agentes se depararam.

O resultado foi que vários membros da família Coxi tiveram de receber tratamento hospitalar, enquanto o relato da PSP aponta para um ferido entre os agentes da Brigada de Intervenção Rápida, que se deslocaram ao bairro, em resultado de ter sido atingido por uma pedra na boca.

Pelo menos seis pessoas deram entrada no Hospital Garcia da Horta, no Seixal, e o indivíduo que arremessou a pedra foi detido.

Em reacção a este caso, cuja dimensão foi exponenciada pela captura de imagens em vídeo e com a sua dispersão através das redes sociais, a organização portuguesa SOS Racismo considerou como "inaceitável" o que se passou no bairro Jamaica e garantiu que vai acompanhar de perto esta situação e as suas tramitações.

Retrato do Jamaica

O bairro da Jamaica, urbanização que começou a ser erguida há mais de 30 anos, no Seixal, periferia de Lisboa, mas que ficou por acabar, foi tomada por centenas de famílias, na sua maioria, oriundas das ex-colónias portuguesas em África.

Tornou-se uma das áreas degradadas mais conhecidas da Grande Lisboa, tanto pelos bons exemplos de projectos sociais como pelo índice de criminalidade.

São mais de 1300 pessoas que ali vivem, embora já esteja a decorrer um processo de transferência para casas sociais construídas para estas famílias.

O risco de ocorrer ali uma tragédia é já assumido por todos, até porque os prédios foram sendo transformados pelos moradores, colocando mais divisões nos prédios, bem como se foi acentuando a degradação das fundações dos edifícios, alagadas quase em permanência por falta de sistema de escoamento de águas ou saneamento básico.