Longe vai o tempo da fotografia que segura, orgulhosa na pose de uma jovem de 40 anos (na foto que acompanha este artigo). Estávamos em 1955 e nos Estados Unidos da América, a dona de casa, negra, Rosa Sparks, é detida num autocarro, por se sentar no lugar destinado aos brancos, dando início ao Movimento pelos Direitos Civis, que levaria ao fim do apartheid naquele país 10 anos depois, em 1965.

Já atravessou o século XX e iniciou a travessia do século XXI, chegou a 2018, pela sua vida longa, sabe que não lhe restam muitos mais anos de vida, mas acumulou saber suficiente para os viver com serenidade, mas também precavida. Nasceu a 30 de Maio de 1915, no município da Quibala, na província do Kwanza - Sul.

É uma mulher serena e saudável, não tem pressão alta nem diabetes e o coração está firme, e, como é hábito nestas circunstâncias, em que um de nós chega tão longe na vida, pergunta-se: qual o segredo de tanta longevidade?

A resposta de Severina Neves é esta: "Mantenho-me sempre ocupada, evito perder noites e vivo sem maldade longe das confusões". Assim. Simples.

Como simples são os seus hábitos alimentares. Come de tudo sem exageros, mas a carne de porco é a preferida, sem descurar a rama de batata e feijão macunde.

Num país onde a esperança média de vida para as mulheres, hoje, se situa à volta dos 60 anos, mas que ainda há uma década rondava os 45, Severina há muito que começou a preparar a sua hora de partir.

Estávamos em 2003, logo a seguir ao fim da guerra em Angola, que a própria atravessou integralmente, desde o início da luta pela independência, em 1961, quando tomou a decisão, sólida e sem pestanejar: "Vou preparar a minha partida!", disse para si própria.

Dito e feito e lançou-se ao trabalho. Fez à mão a roupa para vestir no dia em que for a enterrar, colocou-a numa mala que mantém sempre debaixo de olho no seu quarto, amealhou cerca de seis mil dólares que guardou bem guardadinhos para garantir que paga, sem precisar de ninguém, todo o cerimonial fúnebre que marcará a sua partida da longa vida que viveu, desde aquele longínquo dia de 1915 até...

Ao longo da vida fez muita coisa, mas é como costureira que gosta de se apresentar e foi como costureira que viveu até se transformar em pensionista, como também gosta de se descrever: "Sou costureira e pensionista", assim mesmo...

A profissão que lhe calhou permitiu-lhe fazer um pé de meia, que colocou no banco e à qual apenas um familiar da sua confiança tem acesso, para levantar e pagar as despesas para as quais está guardado.

"Preparei para não dar trabalho a ninguém. Como costureira e pensionista, tenho o meu dinheiro guardado no banco, apenas um familiar tem acesso a retirá-lo quando eu morrer", disse.

Severina Neves não teve filhos, e essa é uma das razões para não querer que mais ninguém seja responsabilizado pelo pagamento dessas despesas. "Como não deixei filhos, não quero que ninguém faça contribuição para o meu óbito".

Mas tem netos, os filhos dos seus irmãos, a quem deixará os bens que tem nas circunstâncias que mais à frente nesta prosa serão descritas.

Pai militar, mãe lavadeira

O pai de Severina foi militar durante a era colonial e a mãe era lavadeira, mas cedo os deixou para trás, quando, aos 11 anos, rumou a Luanda, na companhia de duas irmãs mais velhas, com a missão de estudar no antigo liceu Salvador Correia, onde foi matriculada pela tia, com quem passou a viver.

"Estudei até à 4ª classe da era colonial, que, na altura, já era um nível muito avançado", conta.

Viveu no bairro dos Coqueiros, nas imediações da igreja dos remédios, cresceu na antiga cacimba do bairro indígena, actual Nelito Soares, onde está situado o estádio da cidadela desportiva.

Conheceu bem a baixa de Luanda e no kwanza sul viveu no bairro Balaia, junto ao moinho, onde tem actulmente uma fazenda. Severina aprendeu a costurar na escola Rita de Matos, na cidade Alta.

Em 1975, tinha Severina 60 anos e era já uma respeitável, à época, idosa, quando no dia 11 de Novembro estava na casa de uma sobrinha, na Maianga, na rua que hoje tem o nome do pan-africanista Kwamme Nkrumah. "Foi uma grande festa!".

Mas antes disso, já Severina sabia o que queria para a sua Angola. Ingressou clandestinamente na Organização da Mulher Angolana (OMA), que tinha sido fundada em 1962 e nela entrou tinha arrancado a década de 1970, dando assim o seu contributo para a causa nacionalista, contexto em que conheceu o fundador da Nação angolana, o Presidente Agostinho Neto.

"Conheci António Agostinho Neto, fiz uma amizade com a irmã mais nova dele, a Irene Neto (hoje com 93 anos), e convivi na casa dos pais dele em Caxicane", uma das aldeias de Catete, onde nasceu o primeiro Presidente de Angola.

Dona Severina contou ao NJOnline que não foi ver de perto o funeral de Neto porque em 1979 tinha regressado à sua terra natal.

"Infelizmente não estive no funeral, voltei à minha terra, no Kwanza- Sul, e fiquei muito triste na altura", explicou.

Na casa de dona Severina tudo é simples. Ali encontramos objectos com mais de 70 anos, uma panela de barro, pegas, chapéu e pratos de madeira (panda) e um ralador de farinha que já era usado pela sua mãe.

A anciã Severina Neves não é de festas, não sabe dançar música nenhuma e conta que durante a sua juventude sempre optou por "trabalhar, estudar e ficar em casa".

Casada duas vezes, Severina ficou viúva do primeiro marido em 1935, ano em que o mundo assistia à transmissão do primeiro programa de televisão, numa relação que durou 17 anos, até enviuvar. Voltou a contrair matrimónio, para outros 17 anos de relacionamento, em 1942, ano em que em Portugal era eleito Presidente António Carmona.

Vive há 33 anos no bairro do Morro Bento.

A luta pela herança

Severina Neves tem várias propriedades, em Luanda e no Kwanza-Sul, não vive com nenhum familiar em casa, é cuidada por um sobrinho próximo, de 60 anos, mas tem outros tantos sobrinhos que se intitulam herdeiros.

"Todos querem ser meus herdeiros, já houve muita luta entre eles, um sobrinho roubou o meu Bilhete de Identidade sem que até hoje saiba para que fim. Tive de tratar de outro e invalidar aquele", contou.

"A minha fazenda no Kwanza- Sul produz muito café e outros produtos agrícolas, está com uma sobrinha por afinidade que eu mesma criei, dei-a para trabalhar, mas já ouvi dizer que todos querem ficar com ela", lamenta.

"Tenho casas arredadas e às vezes sai luta entre os familiares que recebem o dinheiro da renda. Dei casa a dois sobrinhos, mas outros querem tirar-lhas porque não são os únicos membros da família. Às vezes penso em vender tudo, mas sei que vai ser pior, porque na minha idade já não preciso de dinheiro", sublinhou.

Esta situação causa-lhe claros transtornos e lamenta que assim seja, porque não precisava deste cenário para viver os últimos anos da sua vida.

Aconselhada pelo médico que a acompanha, conta, começou a beber um copinho de vinho branco para a ajudar a suportar melhor estes dias.