A exclusão destas duas figuras pelos Deputados do MPLA levantou uma grande celeuma, especialmente nas hostes dos militantes da UNITA; mas também de algumas franjas da sociedade. Seja por ignorância, por "zanga" com a governação do MPLA, ou mesmo por oportunismo político. O grande argumento é que, em nome da "Reconciliação Nacional", devia-se passar uma borracha sobre os seus actos e "distingui-los por serviços relevantes pela Independência e a Paz nos 50 anos de Independência de Angola". Ora, isso não faria sentido e, passamos a explicar porquê.

O primeiro argumento é político. Jonas Savimbi conduziu uma das mais sangrentas e longevas rebeliões armadas no continente africano. Foram 27 anos. Driblou e resistiu às inúmeras tentativas de uma conclusão negociada pelas Nações Unidas em nome da comunidade internacional, tendo sido por isso declarado terrorista internacional. Em consequência disso, ele, os coadjuvantes e a sua organização foram alvos de sanções internacionais. Enfraquecido, por um lado, e com o aumento da pressão das forças governamentais, acabou ingloriamente derrotado e morto e, os sobreviventes do seu movimento, debilitados e desnutridos, aceitaram a magnanimidade dos vencedores que, amnistiaram os seus crimes de guerra e os acolheram e integrarem-se nas instituições do Estado. Parece agora que a UNITA quer "esticar" essa magnanimidade à premiação desta obsessão fatal pelo Poder a qualquer preço, por via de uma condecoração. Convenha-se que é esticar a corda em demasia. Em menor medida, isso aplica-se a Holden Roberto, com a diferença que, em 1978, parou a sua participação na guerra civil, em 1992, juntou-se brevemente a Savimbi no Huambo, mas cedo desistiu e regressou a Luanda onde terminou os dia em paz.

O segundo argumento é jurídico. Jonas Savimbi foi, como dito atrás, declarado terrorista internacional. Criminoso de guerra, se preferirem. Morreu nessa condição e, mesmo depois da sua morte, não foi levantado esse estatuto. Se, por acaso, houver consenso nacional para a reabilitação do seu nome, isso teria que passar por um processo jurídico também. Não há dúvidas hoje que se Savimbi fosse capturado em combate, seria submetido a julgamento. As Nações Unidas, na época, já estavam a equacionar o cenário de ele ser entregue ao Tribunal Penal Internacional de Haia para ser julgado ali (havia dúvidas na altura se as autoridades angolanas aceitariam essa opção e não quereriam julgá-lo mesmo em Angola). Pelas várias mortes que ordenou, o mais certo é que seria condenado e cumprir pena de prisão em Haia. Que respeito teria Angola se depois condecorasse uma individualidade nessa condição?

O terceiro argumento é ligado aos Direitos Humanos. A longa lista de pessoas que mandou executar, algumas com requintes de barbárie que arrepiam ainda hoje, revelam uma personagem com um profundo desprezo pela vida humana e que usava as execuções sumárias como forma de manutenção de poder. Desde potenciais rivais a amantes e esposas, suspeitas de feiticeiras jogadas às chamas num espectáculo dantesco digno dos campos de concentração nazistas, colaboradores próximos como os já famosos Tito Chingunji e Wilson dos Santos, cabos de guerra derrotados nos campos de batalha como os agora descobertos Generais Bock, Antero e Assobio de Bala... e outros tantos menos conhecidos, a lista é tão longa que o seu biógrafo e inicialmente grande amigo Fed Bridgland,

depois de desiludido, chegou a um ponto que o considerou um psicopata ávido de sangue. Não se trata de uma pessoa que, por circunstâncias de luta de guerrilha, eventualmente executou alguns rivais, mas alguém que não tinha pejo em tirar a vida pelos mais triviais motivos - como passionais, por exemplo - e às vezes com requintes de barbérie verdadeiramente arrepiantes. Como provam os relatos das mortes dos Generais mencionados atrás, ou de esposa, ou amante deixada numa cova para ser devorada pelas feras. Condecorar uma figura destas seria o equivalente aos alemães distinguirem Adolf Hitler póstunamente. Ou, pelo menos, assim seria percebido.

Há finalmente o argumento ético e moral. Uma coisa é perdoar os crimes cometidos durante o conflito. Isso deve acontecer e é o fundamento da Reconciliação Nacional. Outra coisa é celebrar estes crimes e recompensá-los. Busquemos o exemplo das igrejas: elas perdoam, em nome de Deus, os pecados; mas nunca os santificam. O pecado é sempre pecado: algo mau, horrível, desonroso que em nenhum momento deve ser encorajado. Perdoado, sim, mas nunca promovido, aliás, o perdão dos pecados é concedido na condição de arrependido, o pecador renunciar a tornar a pecar. Ora, condecorar quem tem uma lista tão longa de crimes pessoais, provados e reconhecidos internacionalmente, não seria celebrar e dignificar esses crimes? Não seria encorajar as novas gerações a fazer igual ou pior?

Outro aspecto essencial para o perdão é o arrependimento. Jonas Savimbi nunca mostrou arrependimento até à sua morte. Já agora, a própria UNITA, passado o susto da derrota militar, assume cada vez mais abertamente o legado de Jonas Savimbi, uns diriam, incluindo os crimes. Ao contrário do Presidente do MPLA e da República que pediu desculpas públicas pelo massacre do 27 de Maio, o partido de Jonas Savimbi sempre se recusou a fazê-lo às várias famílias que perderam entes queridos, alguns deles de forma inenarrável. E, para deixar esse ponto bem claro, retirou-se da CIVICOP para não encarar as ossadas e as famílias que o seu líder mandou executar nas matas. Esse é o elemento que falta verdadeiramente à Reconciliação Nacional: a falta de arrependimento e a arrogância da UNITA, enquanto partido que deve desculpas àqueles que feriu profundamente. O escamotear dos crimes cometidos, a reacção arrogante quando descobertos, o que falta à Reconciliação Nacional é essa assumpção com humildade, não o alarido que se vê, porque uma boa parte da Nação se recusa a aceitar que uma pessoa tão tenebrosa, cujos crimes continuam a ser descobertos, seja distinguido com uma das mais altas condecorações do País.

Enquanto gastamos "tinta e latim" a discutir se quem destruiu bens e vidas deve ser condecorado ou não, devia-se falar de "heróis da paz", angolanos e estrangeiros, graças aos quais, esse povo não morreu de fome, de doenças, de

falta de abrigo e as suas crianças tiveram escola para estudar, mesmo no meio daquela guerra fraticida. Refiro-me aos trabalhadores humanitários das Agências das Nações Unidas e inúmeras ONG que levaram alimentos, medicamentos e material escolar a um quarto da população de Angola na condição de deslocada interna. Incompreendidos pelos dois lados, negociaram corredores humanitários, vacinação a crianças, distribuíram material escolar, construiram campos de deslocados onde providenciaram abrigo, comida, água, saneamento e segurança. Foi literalmente graças a eles que milhões de angolanos sobreviveram, pois os recursos do Governo eram quase todos para a guerra e, os da UNITA também. Alguns deles perderam a vida nessas operações. Maitre Aliuone Blondin Beye, o maliano Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas morto num acidente de aviação, no Togo, quando em missão de paz não foi o único. Pessoalmente, lembro-me de alguns angolanos anónimos, como Jorge Tarana do PAM, morto numa emboscada entre Ndalatando e Golungo Alto; o Engº. Argentino do Grupo de Apoio à Criança (GAC) do Huambo; os dois assistentes de voo dos dois aviões Hércules do PAM abatidos nos céus do Huambo em 1999; e tantos outros. Vivos há muitos mais, é só recorrer aos arquivos das Nações Unidas. Quem escreve estas linhas escapou por duas vezes accionar minas enquanto liderava colunas humanitárias devidamente negociadas (as duas em áreas sob controlo da UNITA). É minha esperança que alguns deles, pelo menos, sejam recordados e distinguidos, pois esses, sim, arriscaram a vida e outros perderam-na, para que os outros vivessem. Merecem ser distinguidos.

Nota final: o texto acima em nada belisca a amizade e consideração que nutro por muitos militantes e dirigentes da UNITA. É uma análise que se quer desapaixonada - até onde possível, claro - das razões objectivas pelas quais a Nação não está preparada para oferecer medalhas e condecorações a Jonas Malheiro Savimbi e, em menor medida, a Holden Roberto. Os acesos debates nas redes sociais mostram isso mesmo. Talvez um dia, ou nessa efeméride, ou noutra se crie então um monumento aos três líderes da luta pela Independência. Sem se pensar no que aconteceu depois. Ali, sim, faria sentido e poder-se-ia compreender que os três lá estivessem.

Talvez seja o tal meio-termo que satisfaria todos em nome da tão invocada Reconciliação Nacional e em nome da verdade histórica. Tão somente da verdade histórica...

*Sociólogo da Comunicação Consultor, Comunicação Estratégica e Operacional