Bouteflika, de 82 anos, deixa o poder ao fim de 20 anos de poder consecutivo e quando já tinha anunciado que se ia recandidata a um 5º mandato, apesar dos evidentes problemas de saúde que tem desde que em 2013 foi acometido de um violento acidente vascular cerebral (AVC).

Este anúncio resulta da forte pressão que milhares de argelinos, especialmente jovens estudantes, fizeram nesse sentido ao longo das últimas semanas em sucessivas manifestações nas maiores cidades do país mas com especial concentração de pessoas na capital, Argel.

A par dessa pressão oriunda das ruas, Bouteflika foi ainda empurrada da cadeira do poder por um pedido directo nesse sentido do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, general Ahmed Gaïd Salah, ex-vice-ministro da Defesa e seu velho compagnon de route que se viu na contingente situação de ter de intervir contra o seu velho amigo pedindo que seja accionado o processo constitucional que o declara incapaz para o cargo de Chefe de Estado.

O que o chefe militar veio pedir, numa intervenção pública transmitida pela televisão pública argelina, na semana passada, foi que seja aplicado o Artº 102 da Constituição que permite a destituição do Presidente da República devido a comprovada "doença grave e prolongada", como é, efectivamente, o caso de Bouteflika.

E o que disse o general Salah? Isto: "É imperativo adoptar uma solução para esta crise, respondendo às legítimas aspirações do povo argelino, que respeite a Constituição e a salvaguarda da soberania do Estado".

O que é, como rapidamente interpretaram os analistas argelinos, o mesmo que dizer para se recorrer ao Art.º 102 para dar início à destituição de Bouteflika, tendo, ainda, este de ser invocado como única forma de garantir a preservação da estabilidade política.

Uma história tortuosa de controlo do poder

Isto, recorde-se, acontece depois de Bouteflika, obrigado por sucessivas manifestações populares a abandonar a candidatura a um 5º mandato consecutivo, ter dado a volta à situação anunciando que não deixaria o poder no final do seu mandato, a 28 de Abril, sob o manto de promessas de uma nova e mais democrática Constituição.

O prolongamento do mandato para lá do tempo constitucionalmente previsto foi justificado por Bouteflika com a necessidade de garantir que deixa o país com uma nova Constituição a que se seguirá a realização de eleições para eleger um novo Governo e um novo Presidente.

Bouteflika respondia assim a mais de três semanas de intensas e tensas manifestações que juntaram muitas dezenas de milhar de pessoas nas maires cidades argelinas, com destaque para a capital, Argel, onde era exigido que este desistisse de outra candidatura presidencial, que seria a 5ª consecutiva, depois de duas décadas no poder.

E, para amenizar os ânimos, já sobremaneira exaltados neste país do norte de África, Bouteflika anunciou que esta permanência inconstitucional no poder tem como propósito criar condições para forjar uma nova Argélia a partir de uma abrangente Conferência Nacional que visará alterar a Constituição, submetendo a versão nova a referendo popular, e remarcar as eleições gerais após esse processo estar concluído.

Por detrás deste movimento no xadrez argelino, Bouteflika diz querer criar um novo sistema político, económico e social, com a intenção de amenizar a tensão no país, até porque são cada vez mais as vozes que se levantam a defender a ideia de que o estado de saúde do Presidente não lhe permite estar por detrás desta estratégia e que é um grupo de pessoas ligadas ao Presidente da República que está a manobrar a situação de forma a manter por tempo indefinido as rédeas do poder.

Isto, porque existe um indício de que assim é no passado recente, quando a candidatura presidencial de Bouteflika, apesar de a Lei Eleitoral argelina o exigir, não foi formalizada pelo próprio, de corpo presente, mas sim por um seu colaborador, abrindo a janela para a dúvida sobre se o velho leão da política africana, onde está desde os 19 anos, nas fileiras contra o colonialismo francês, ainda possui as faculdades mentais para decidir por si.

Mesmo que ainda não expressos de forma óbvia, crescem os receios de que estas movimentações possam esconder um plano secreto para a manutenção do poder no seio das eleites que mandam na Argélia há décadas e que agora está claramente ameaçado pela vontade da juventude argelina demonstrada nas ruas de forma massiva e que, após este anúncio do prolongamento do 4º mandato, estão a regressar às praças da República e às avenidas de Argel.

Desde 2013 que Abdelaziz Bouteflika passa períodos longos em cuidados de saúde na Suíça e, após ter sido atingido pelo AVC, deixou de se dirigir de viva voz ao povo argelino, optando sempre por comunicados escritos que muito duvidam que sejam sequer escritos pelo seu punho.

Está um dos heróis da independência argelina a destruir o seu legado com estas artimanhas e jogadas de bastidores? A pergunta é cada vez mais repetida na forma de insinuação de que assim é.

Um passado intenso, longo e notável, mas...

O actual Presidente argelino deixa para trás uma longa vida política que começou ainda na década de 1950, integrando as forças nacionalistas que travaram a dura guerra contra a França colonial entre 1954 e 1962, tendo, logo após a independência, sido indicado para ministro dos Negócios Estrangeiros.

Bouteflika usou este cargo para emergir com um dos mais acérrimos defensores da integração da Argélia no movimento internacional dos Não-Alinhados, o 3º palco mundial num contexto de Guerra Fria que levava o mundo para a bipolarização total e que foi, relativamente, travado por estes países de África, América Latina e Ásia.

Foi também ele um dos mais importantes pilares de acolhimento de idealistas revolucionários de todo o mundo em Argel, onde estiveram alguns nacionalistas angolanos, revolucionários portugueses, ou ainda homens como Nelson Mandela e Ernesto Che Guevara, usando esta cidade para organizar ou reorganizar os seus movimentos de libertação ou revolucionários.

Foi ainda Bouteflika que iniciou o processo de pacificação com os movimentos islâmicos que levaram o país a uma longa guerra civil, com mais de 200 mil mortos, depois de ter regressado à Argélia na década de 1980, após anos de exílio, tendo sido eleito em 1999 graças a essa intervenção decisiva, usando o cargo de Presidente para impor negociações e afastar do poder os militares.

Desde então, graças ao aumento da produção petrolífera e aos preços do ouro negro em alta até 2014, Bouteflika conseguiu manter a Argélia longe da irradiação das "primaveras árabes" que arrasaram países do norte de África como o Egipto, a Tunísia ou a Líbia e quase faziam desmoronar o reino tranquilo de Marrocos.

Mas tudo mudou em 2014, com o petróleo a perder viço e com os problemas a amontoarem-se num país com uma população muto nova e exigente, como o mostram estes 15 dias de manifestações, motivadas por um crescente desemprego, uma pobreza galopante, uma corrupção quase endémica e com os serviços públicos a perder qualidade de dia para dia.

Agora, com uma nova Constituição à espreita e com Bouteflika fora do palco, a Argélia volta a assumir as rédeas do seu futuro... se, entretanto, a nova Constituição for de encontro à exigência de abertura dos milhões de jovens argelinos que já mostraram não estar disponíveis para atrasos no processo de transformação social em curso.

Abdelaziz Bouteflika foi ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1963 e 1979, e, enquanto Chefe de Estado, que exerce desde 1999, foi responsável, em 2002, pela extinção dos últimos focos do radicalismo islâmico e da guerra civil que estes provocaram, e, em 2011, acabou com o estado de emergência que mantinha o país pejado de barreiras policiais. Foi ainda Presidente da Assembleia-Geral da ONU em 1974.