Tal como a situação estava a meio da manhã de hoje, à beira de se extinguir o prazo dado aos guerrilheiros da TPLF, tudo apontava para que a prometida ofensiva do Exército leal a Adis Abeba fosse iniciada com um pesado ataque às guarnições independentistas de Mekelle, a cidade capital da província de Tigray onde habitam mais de 400 mil pessoas.

Mas, enquanto as linhas da frente permanecem difusas por falta de informação - os jornalistas estão impedidos de se movimentarem na região -, com as forças governamentais a garantirem um avanço sólido sobre as posições rebeldes, a TPLF garante que tem dado uma resposta à altura, destruindo dezenas de veículos de combate nas estradas que rumam a Mekelle.

E, ao mesmo tempo que os rebeldes (na foto), liderados por Debretsion Gebremichael, prometem não desistir enquanto um dos seus respirar, sublinhando que se Mekelle cair às mãos das forças federais isso não quer dizer que cairá a luta da Frente Popular, milhares de pessoas, maioritariamente mulheres, crianças e idosos, procuram segurança atravessando a fronteira com o Sudão, calculando a ONU que já mais de 45 mil tenham feito a travessia, mesmo sabendo das severas condições de sobrevivência que vão encontrar do outro lado da fronteira.

A severa crise humanitária que se adivinha para a região contextualizada pelas linhas de fronteira da Etiópia (Tigray), Sudão e Eritreia, está a juntar as vozes dos governos africanos da região, da União Africana e da ONU, no sentido de levar as partes em conflito à mesa das negociações, mas, até agora, isso tem sido rechaçado com veemência, tanto pelos homens e mulheres do movimento guerrilheiro de Debretsion Gebremichae como pelas forças federais de Abyi Ahmed.

E o pior, como têm notado analistas ouvidos pelas agências internacionais, é que Debretsion Gebremichael parece estar disposto a manter a pressão - cuja razão histórica pode ser melhor compreendida aqui se o leitor for escorreito na língua inglesa -, mantendo a decisão de não depor armas, prometendo levar a luta para todos os cantos da província e também das regiões limítrofes, e acusando o primeiro-ministro de estar a procurar esconder as derrotas do seu Exército no avanço sobre Tigray com ameaças de enviar os tanques sobre Mekelle e com um ultimato que sabia estar condenado a falhar.

Para já, apesar da dificuldade de obter informações através de fontes independentes por ser muito difícil o acesso às zonas de combate, as organizações internacionais, como a Amnistia Internacional e outras ONG"s, apontam para milhares de mortos e feridos, mais de 40 mil refugiados, vários massacres perpetrados por um e outro lado da barricada.

A ONU, cujo Conselho de Segurança tem marcada para a próxima terça-feira uma reunião virtual sobre a crise etíope, tem feito apelos sucessivos, inclusive através do seu Secretário-Geral, António Guterres, para que as hostilidades cessem, embora, para já, sem sucesso.

O lento terror do passar das horas

À medida que as horas passam, segundo as agências internacionais com correspondentes naquele país, milhares de pessoas continuam a caminhar em direcção à fronteira com o Sudão ou para fora de Tigray, o que está a gerar fortes preocupações à comunidade internacional, com a ONU a lançar repetidos apelos ao diálogo como forma de resolver o diferendo.

Todas as tentativas de abrir diplomaticamente uma saída para a crise militar através do diálogo, mesmo as protagonizadas por governos africanos vizinho, têm sido recusadas por Abiy Ahmed e o seu Executivo, que insiste como única solução a rendição dos rebeldes.

Um dos oficiais citados pela imprensa local e internacional, o coronel Dejene Tsegaye, admitiu que o ataque final a Mekelle pode ser diferente do que se tem passado até aqui, porque a decisão de evitar vítimas civis será alterado neste caso, visto que foi dada a oportunidade de os habitantes da capital de Tigray abandonarem a cidade antes do ribombar dos canhões.

Porém, a aparente facilidade que Abiy Ahmed pretende demonstrar parece ser algo diferente na realidade, como um documento secreto elaborado pelas Nações Unidas e divulgado pelo The Guardian demonstra.

Segundo este documento, as forças etíopes estão a enfrenar uma oposição muito mais vigorosa do que é admitido oficialmente e através das suas comunicações, estando em aberto a possibilidade de as forças rebeldes, melhor conhecedoras da região, contando com os milhares de homens naturais da região que integram as forças armadas estacionadas nos quartéis do norte do país, darem início a uma estratégia de "atrito" que consiste em lançar ataques cirúrgicos prolongando no tempo este conflito, a ponto de isso poder retirar o ímpeto às forças regulares.

Devido às características do terreno, montanhoso, acidentado e com vastas áreas de difícil acesso para um Exército regular apoiado por artilharia e tanques, os guerrilheiros da TPLF, segundo analistas citados pelos media internacionais, podem com relativa facilidade prolongar indefinidamente este conflito, deixando o primeiro-ministro e Nobel da Paz Abiy Ahmed em sérias dificuldades perante a sua população e perante o mundo.

Esta guerra resultou de meses a fio de um constante e sólido aumento das tensões entre os rebeldes e o Governo de Abiy Ahmed, depois de o seu Governo ter adiado eleições devido à pandemia mas com os lideres de Tigray a realizarem-nas na mesma, gerando uma insustentável quebra no já de si escasso diálogo e dando o mote para disparar a primeira bala, cujo ruído ainda hoje se ouve, tendo, pelo caminho, causado milhares de mortos e feridos e mais de 35 mil refugiados naquele que era um dos mais promissores países africanos.

A ofensiva governamental foi lançada depois de Abiy Ahmed ter acusado a TPLF de ter atacado uma guarnição militar regular, apoderando-se do armamento ali estacionado. As primeiras batalhas vieram mesmo dos céus, com a Força Aérea a fazer raides diários sobre Tigray.

As animosidades, como o Novo Jornal explica aqui, têm, no entanto, uma génese histórica, porque as elites políticas de Tigray, região com apenas 9 milhões dos 109 milhões de habitantes da Etiópia, o segundo país mais populoso do continente, governaram a Etiópia durante décadas até que o actual primeiro-ministro Abiy Ahmed, chegou ao poder, em 2018.

Abiy Ahmed é natural de Beshasha, região-estado de Oromia (cuja capital é Adis Abeba, em acumulação com a capital do país), com 35 milhões de habitantes, no centro da Etiópia, e o povo Oromo, histórico rival do povo Tigrayan, que conseguiu manter as rédeas do poder etíope nas últimas décadas, praticamente desde a morte de Haile Selassie, em 1974, também ele, tal como Abiy Ahmed, natural de Oromia.