Foi a partir de Wilmington, no estado do Delaware, onde vive, que Joe Biden, acompanhado da sua vice-Presidente, a índia-afro-americana Kamala Harris, que vai ser a primeira mulher vice-Presidente e a primeira não caucasiana a ocupar este cargo, lançou um veemente apelo aos republicanos que o combaterem nesta disputa eleitoral para que lhe permitam uma oportunidade de provar que vai ser "o Presidente de todos os norte-americanos" e não de apenas aqueles que o elegeram.

Isto, num momento que pode ser histórico se Trump insistir que a eleição lhe foi "roubada" e que legalmente ganhou "por muitos" e, por isso, não aceitar os resultados, o que, no limite, pode obrigar a uma intervenção das forças de segurança para o expulsar da Casa Branca se o impasse se mantiver até 20 de Janeiro, data em que a Constituição norte-americana obriga à transição do poder para o Presidente eleito.

Contra esta situação, que pode gerar sérios danos reputacionais à democracia norte-americana, que tem 231 anos de vida, Joe Biden garantiu no seu primeiro discurso à Nação que não vai olhar para os 50 estados do país e ver se são azuis (democratas) ou vermelhos(republicanos), mas sim "o país como um todo, apenas os EUA".

Apontou o seu local de trabalho a partir de Janeiro, a Casa Branca, como "um local a partir do qual vai reerguer a alma americana", reconstruir a classe média e "garantir que os Estados Unidos vão voltar a ser um país respeitado no mundo pela sua seriedade e respeitador dos compromissos que assume".

Admitiu a importância do voto da comunidade afro-americana para lhe garantir uma recta final da campanha e da eleição vencedora, mas o maior ênfase foi para os eleitores do outro lado da "barricada", a quem disse: "Para todos aqueles que votaram no Presidente Trump, compreendo o seu desapontamento, porque eu também já perdi umas quantas vezes, mas este é o tempo de nos darmos uns aos outros a oportunidade de olhar em conjunto para o futuro".

"É tempo de colocar de lado a retórica agressiva, baixar a temperatura e olharmos olhos nos olhos uns dos outros e, de forma a conseguir o progresso que todos queremos, deixar de tratar os outros como inimigos", acrescentou.

Este tipo de discurso apaziguador é comum em todos os Presidentes eleitos, sejam republicanos ou democratas, excepto com Trump, que desde o primeiro minuto optou por erguer um muro entre os seus apoiantes e os "outros", apontando os democratas como inimigos e o resto do mundo como amigos ou inimigos igualmente, dependendo se estavam ou não inequivocamente ao seu lado, como, por exemplo, na sua guerra comercial com a China, a ponto de ter apostado em deixar tratados internacionais, como o Acordo de Paris, que objectiva a defesa ambiental, e interromper o financiamento de agências da ONU fundamentais, como a OMS ou, até, ameaçar a NATO.

Neste momento, que é histórico porque culmina (excepto se Trump insistir na batalha judicial) umas eleições que foram as mais participadas de sempre - nunca os dois candidatos tiveram tantos votos, Biden 75 milhões e Trump 71 milhões - e ainda porque, como raramente aconteceu em 231 anos de eleições, o candidato Presidente sai pela porta das traseiras não conseguindo um segundo mandato... A última vez que sucedeu foi em 1992, quando George H. Bush peedeu contra Bill Clinton.

Mas a história está a ser feita à frente dos olhos do mundo, e ao minuto, com o surgimento da primeira mulher na vice-Presidência, com o facto de se tratar de uma afro-índia-descendente.

Kamala Harris, que também se pronunciou neste palco da história contemporânea, para elogiar a "coragem de Joe Biden" ao tê-la convidado, e para dizer alto e bom som que se foi a primeira mulher no cargo, "não será de certeza a última", porque "cada menina que está a ver este momento, volta a acreditar e a saber que este é um país de oportunidade e de todas as possibilidades".

Apontado ainda o olhar para o futuro, Harris sublinhou que "as crianças deste país, independentemente do género, têm hoje aqui uma mensagem clara; podem sonhar com ambição, prossigam com convicção e vejam-se a vocês mesmos de uma forma que se calhar nunca ninguém viu porque simplesmente isto nunca aconteceu antes".

Para já, apenas a promessa de litigância jurídica por parte de Trump, que, recorde-se, foi ao Twitter escrever em letras garrafais (maiúsculas), o que significa que está aos gritos, que ganhou "por muitos", estando a insistir, apesar de alguns dos seus conselheiros mais próximos, segundo os media norte-americanos estão a divulgar, estarem a insistir para que admita a derrota com a dignidade institucional que o cargo impõe.

Ainda no Twitter, o ainda Presidente escreveu que nunca um Presidente e candidato tinha conseguido 71 milhões de votos", deixando no ar a ideia, mais uma vez, de que só através da fraude os democratas conseguiram ganhar, embora nenhum dos seus assessores, incluindo o vigoroso Rudy Giuliani, o antigo "mayor" de Nova Iorque e seu mais fervoroso apoiante e conselheiro legal, terem apresentado uma única prova de irregularidades na votação.

Para já, se tudo ocorrer como é suposto, a 20 de Janeiro, depois de a 14 de Dezembro o Colégio Eleitoral confirmar a eleição, Joe Biden tem pela frente um conjunto complexo der assuntos para agarrar de frente.

Desde logo o combate a pandemia da Covid-19, que Trump minimizou profundamente nestes meses, e que contribuiu seguramente para a sua derrota, mas ainda as questões internacionais, como a reversão do processo de abandono do Acordo de Paris, que visa combater as alterações climáticas, voltar a apoiar a OMS, ou ainda, três das suas prioridades já assumidas, empenhar-se em revitalizar a economia depauperada pela crise global, combater o racismo estrutural e e investir nas energias não-poluentes.