Como o Novo Jornal noticiou na segunda-feira, o Chefe de Estado tunisino justificou a demissão do primeiro-ministro Mechichi e do seu Governo bem como suspendeu a Assembleia dos Representantes do Povo (Parlamento) alegando que o Executivo não estava a ser capaz de dar resposta à grave crise sanitária que o país atravessa devido à Covid-19 e económica, com o colapso do turismo, que é a grande fonte de receitas do país.

Com 12 milhões de habitantes e uma história conturbada desde a "Primavera árabe" que em 2011 levou à queda do ditador Ben Ali, que governava a Tunísia com mão-de-ferro desde 1958, é o país com mais casos de morte por Sars Cov-2 em África logo a seguir à África do Sul e um dos onde mais morrem pessoas com esta infecção pandémica.

Com as falhas generalizadas de oxigénio nos hospitais e com as mortes a sucederem em catadupa, centenas de milhares de pessoas saíram à rua, no Domingo, em várias cidades tunisinas para exigir respostas imediatas, fazendo lembrar os protestos que em 2011 conduziram Ben Ali ao "cadafalso" político, o que foi aproveitado por Kais Saied para se ver livre do primeiro-ministro Mechichi.

O problema é que Mechichi é apoiado pelo Movimento Ennahdha, de raiz islâmica acentuada, o maior partido tunisino, que se opõe a este "golpe", tendo uma das mais veementes reacções vindo do presidente da Assembleia dos Representantes do Povo Rachid al-Ghannouchi, que, pouco depois da decisão polémica de Saied, lançou severas críticas ao Presidente e anunciou a convocação de uma sessão parlamentar para segunda-feira, em claro desafio à suspensão deste órgãos legislativo tunisino, mas que foi impedida pelo Exército.

Isto é especialmente relevante porque Rachid al-Gannouchi é o líder e co-fundador Ennahdha, o maior partido da Tunísia e com grande capacidade de mobilização popular entre as camadas mais baixas da sociedade tunisina, ainda fortemente afectadas pela crise dos últimos anos e que é (era) o suporte político do primeiro-ministro Hichem Mechichi.

Embora seja ainda cedo para dar como certo que Kais Saied vai conseguir impor a sua vontade, suspendendo o Parlamento, assumindo ele todos os poderes executivos, com um recolher obrigatório longo, de um mês, e com a proibição de manifestações, argumentando que isso é para melhor lidar com a crise sanitária e a pandemia da Covid-19, a verdade é que o Presidente mostrou estar à-vontade ao juntar-se, no Domingo, aos seus apoiantes nas ruas de Túnis para celebrar a demissão de Mechichi e do seu Governo que se mostrou incapaz de lidar com o problema que tinha em mãos.

A par da crise sanitária, também a aparente inacção governativa devido aos bloqueios mútuos entre o Presidente e o Governo do Movimento Ennahdha tem gerado forte insatisfação popular, com as sondagens a mostrar que a maioria dos 12 milhões de tunisinos está farta de ausência de resultados prometidos pelos governantes que substituíram o regime ditatorial de Bem Ali, largamente comprometidos pela pandemia gerada pelo Sars CoV-2, que deixou a descoberto de sobremaneira as fragilidades económicas da Tunísia, país que tem no turismo uma das suas principais fontes de receita e que, agora, se eclipsou.

Com o historial de restrições democráticas que a Tunísia tem, alguns analistas admitem já que este recolher obrigatório, que vai vigorar por um mês entre as 19:00 e as 06:00, e a proibição de ajuntamentos, que não permite que mais de três pessoas se juntem na rua, é um forte indício de que Kais Saied quer mais que apenas ganhar tempo para recolocar o país nos carris e melhor combater a pandemia e os seus efeitos entre a população.

Para já, com esta demonstração de poder, a ponto de o Exército estar, aparentemente, ao lado de Saied, o agora deposto primeiro-ministro já veio, ao fim do dia de segunda-feira, informar que entregará o poder a quem, para isso, for designado pelo Presidente da República.

Mechichi disse ainda que não vai dar um passo sequer para contrariar as ordens de Saied e que isso se deve à sua vontade de não contribuir para mais sofrimento entre o povo tunisino.

Para já, estas medidas drásticas do Presidente Kais Saied são vistas por toda a oposição e o Movimento Ennahdha, que estava no poder depois de eleito democraticamente, como um claro golpe de Estado, embora isso seja veementemente negado pelo Chefe de Estado.

No terreno, poucas dúvidas restam de que se não é um golpe de Estado é, pelo menos, um assumir extraordinário do poder com severas restrições à democracia, senão mesmo a sua total diluição, como se pode perceber pelos analistas tunisinos ouvidos nas ultimas horas pelas agências de notícias e outros media com jornalistas no país.

Kais Saied é um independente, de 63 anos, professor universitário, que vingou nas urnas em 2019 com um plano para a Tunísia que foi apresentado aos eleitores como o caminho para a retoma definitiva da normalidade constitucional, tendo, até à sua eleição sido o líder da Associação Tunisina da Lei Constitucional.

Saied tem um longo currículo em organismos internacionais ligados à lei e aos Direitos Humanos, seja no âmbito da Liga Árabe, sejam em universidades estrangeiras e esteve na linha da frente dos especialistas que reformularam a Constituição da Tunísia em 2014.

Para já, é do exterior que lhe estão a ser dados os principais recados a Kais Saied, seja da União Europeia, que pediu, através do seu Alto Representante para a Política Externa, contenção e o regresso da normalidade institucional, e dos EUA, de onde o Secretário de Estado, Antony Blinken, ligou para o aconselhar vivamente a não se desviar dos princípios constitucionais e para se manter sob a égide dos Direitos Humanos.

As Nações Unidas também já exigiram o cumprimento dos preceitos constitucionais e que a violência não seja recurso para disputas políticas, tendo a Liga Árabe pedido contenção e que a violência não tenha lugar na Tunísia.

A União Africana, que tem uma política fortemente contrária a alterações constitucionais e a tomadas de poder à sua margem, ainda não se tinha pronunciada às primeiras horas de hoje.

No interior do país, a população, pelo menos a que saiu à rua aos milhares, está claramente do seu lado, porque, principalmente, a situação sanitária gerada pela Covid-19 é insustentável e porque a economia do país está à beira do colapso.