Embora proveniente do universo mítico, a narrativa de Penteu oferece uma leitura simbólica que se revela surpreendentemente pertinente para compreender certos traços da realidade económica de Angola. Tal como o rei de Tebas, algumas lideranças económicas contemporâneas demonstram dificuldades em reconhecer sinais emergentes de mudança e em acolher contributos externos ao círculo restrito da decisão. Esta resistência à escuta e à adaptação pode comprometer a eficácia das respostas políticas económicas, contribuindo para a manutenção de desequilíbrios persistentes e dificultando a construção de consensos em torno de um projecto de desenvolvimento económico mais inclusivo e sustentável.
Ora vejamos,
De acordo com os dados do Ministério das Finanças (MINFIN), referentes ao Relatório de Execução Trimestral do Orçamento Geral de Estado (OGE) do 1.º Trimestre 2025, Angola registou uma receita total no montante de 5,8 biliões de kwanzas (aproximadamente 6,7 mil milhões de dólares americanos), correspondendo 16,6 por cento do OGE aprovado, contra os 25 por cento que correspondia a uma distribuição linear da execução orçamental. A captação de financiamento externo e as contribuições sociais fixaram-se nos 27,78 e 31,42 por cento, respectivamente - acima do que correspondia a uma tal distribuição linear. Todas as outras rubricas da receita tiveram um desempenho negativo. A receita petrolífera apresenta o menor desvio - 18,94 por cento, enquanto a receita de financiamento interno apresentou o pior desempenho orçamental com 4,7 por cento.
A execução da despesa pública revela, com clareza aritmética e alguma crueldade burocrática, o verdadeiro fardo suportado pelo povo. O serviço da dívida absorveu uns impressionantes 49 por cento da execução do OGE - uma percentagem que, por si só, ilustra de forma eloquente a hierarquia das prioridades nacionais. A este peso somam-se os encargos com remunerações e despesas de funcionamento da administração pública, que juntos ultrapassam os 27 por cento. A execução de projectos públicos, integralmente financiados por entidades externas, correspondeu a cerca de 20 por cento da despesa. A defesa e segurança nacional, por sua vez, manteve-se sólida, consumindo 14 por cento do total - percentagem que, curiosamente, ultrapassa largamente os montantes destinados a sectores vitais para o bem-estar do povo. De facto, os habituais "enteados" do Executivo, saúde e educação, receberam apenas 5 por cento e 4 por cento da despesa executada, respectivamente. Estes valores, recorrentes e tristemente previsíveis, confirmam que a retórica da prioridade social continua a ser, na prática orçamental, um mero exercício de linguagem - útil em discursos e planos estratégicos, mas com reduzida expressão quando chega o momento de alocar recursos reais. Não surpreende, por isso, que o País enfrente actualmente um surto de cólera - talvez menos um acidente sanitário do que o sintoma inevitável de uma política pública que sistematicamente privilegia, por exemplo, a engrenagem da defesa e segurança em detrimento da saúde do povo.
A equipa de auxiliares do Presidente João Lourenço parece operar a três velocidades distintas e descoordenadas. Primeiro, no domínio da gestão macroeconómica, prevalece um ambiente que poderia ser descrito, sem exagero, como de "estátua: ninguém se mexe, ninguém faz nada". O MINFIN permanece mergulhado numa espécie de letargia institucional, à espera de que factores exógenos - impacto da política comercial da administração norte-americana e guerra no Médio Oriente - continuem a empurrar os preços do petróleo para cima, de forma a garantir, no mínimo, que a execução orçamental no final do exercício se mantenha ao nível anémico observado no primeiro trimestre. A ausência de propostas pró-activas ou ideias reformadoras para inverter o rumo das finanças públicas é tão evidente quanto desconcertante. Por sua vez, o Banco Nacional de Angola (BNA) atravessa um período de irrelevância funcional quase histórica. É certo que, no contexto macroeconómico nacional, a condução da política monetária e cambial se encontra fortemente condicionada pelas necessidades e disponibilidades do Tesouro, mas não deixa de ser notório o grau de inércia com que o BNA se abstém de intervir. Já o Ministério do Planeamento (MINPLAN) - tradicionalmente o parente pobre deste tridente - permanece envolto numa ausência ensurdecedora, sem evidências claras de querer ou conseguir romper com a sua posição periférica. Este deveria ser, em teoria, o órgão responsável por delinear e acompanhar a estratégia de desenvolvimento económico, territorial e social do País, articulando visão com execução. Na prática, o silêncio é quase total. Pasme-se!
No segundo grupo encontramos os auxiliares responsáveis pelo sector produtivo que vão fazendo o que podem, mas estão praticamente sentenciados ao insucesso se não existir o mínimo de estabilidade macroeconómica e um verdadeiro apoio ao sector privado para que possam inverter a anémica dinâmica do sector não-petrolífero. Vale ressaltar o trabalho desenvolvido em alguns sectores tais como o i) transporte, ii) recursos minerais, petróleo e gás e do iii) turismo que revelam ter um plano e, de facto, têm conseguido marcar a diferença. Por último, vai o pelotão de responsáveis pelo sector social, persistentemente condenados a irrelevância para marcar a agenda do Executivo. Com poucos recursos financeiros, não se vê melhorias na prestação de serviços sociais ao povo. Uma excepção digna de nota é o ensino superior, que, ao contrário de outros subsectores, parece ter compreendido que a sua missão passa pela melhoria contínua da qualidade dos serviços prestados à população - ainda que esta consciência surja mais por resiliência interna do que por enquadramento estratégico. Sem serviços públicos de saúde e educação com qualidade e cobertura territorial adequada será ilusório falar em fortalecimento do capital humano, condição sine qua non para sustentar o desenvolvimento económico e dinamizar, de forma estrutural, o sector produtivo nacional.
O panorama da condução da política económica do País assemelha-se cada vez mais a um navio à deriva, em que nenhum dos principais actores políticos assume - nem parece pretender assumir - a responsabilidade de traçar uma rota clara, quanto mais de implementar uma estratégia verdadeiramente transformadora. Enquanto estes três grupos de auxiliares do Titular do Poder Executivo operam em universos paralelos - os deprimidos à espera de milagres, os voluntariosos à espera de meios e os abandonados à espera de relevância - o tempo passa, a economia resiste como pode, e o País continua em compasso de espera por um sinal inequívoco de direcção económica, ou pelo menos por alguém que admita estar ao leme, mesmo que apenas para informar que se perdeu o mapa.
A situação económica de Angola evoca, com alguma precisão simbólica, a tragédia de Penteu, o rei tebano que, por orgulho e recusa em ouvir conselhos sensatos, zombou dos deuses e da razão, e conduziu a sua cidade à ruína - não por falta de avisos, mas por surdez deliberada. Nesta alegoria moderna, o povo - como outrora as bacantes em transe - sofre as consequências de decisões tomadas à margem da escuta e da lucidez. E é neste mesmo espírito que Jorge Mário Bergoglio (1936-2025), Papa Francisco, advertiu que "a pior discriminação de que sofrem os pobres é a falta de atenção espiritual", lembrando que a exclusão social é frequentemente precedida por um silêncio político cúmplice que os apaga do centro das prioridades. Tal como em Tebas, também aqui a negligência pode revelar-se o princípio de uma tragédia anunciada.n
*Professor Auxiliar de Economia e Investigador Business and Economic School - ISG
Economista*
Bibliografia
• Relatório de Execução Trimestral do Orçamento Geral do Estado para 2025 do 1.º Trimestre, Maio de 2025.