Frank Kimbrough nasceu em Novembro de 1956, em Roxboro, Carolina do Norte, e deixou-nos quase no final de 2020 - o Ano Covid-19 - a 30 de Dezembro.
Não gostaria de que a sua dolorosa partida fosse silenciada, esquecida, o que seria profundamente injusto.
Começou a aprender piano desde muito cedo. A forte componente assente na música clássica permitiu-lhe, por um lado, aprimorar muitos aspectos técnicos e, por outro, alargar os seus horizontes musicais, em que existiam gostos musicais abertos e sem fundamentalismos redutores.
Apetece sublinhar que a Clássica e o Jazz não são compartimentos estanques na Música, nem "zonas militares inimigas". Oiça-se, nomeadamente, "The Nutracker Suite", a famosa peça de Tchikovsky, gravada por Kenny Barron (piano), Ron Carter(contrabaixo) e Steffon Harris (marimba), que criaram uma música de recorte clássico e intemporal. Os pianistas Uri Caine e Chick Corea tocam Mozart. E os músicos do "The Modern Jazz Quartet"...adoravam Bach. Em Bill Evans, ao longo dos anos, "o sentido da estrutura de Bach, o romantismo de Chopin, a harmonia de Debussy e Ravel", como destaca Michel Savy, são influências fortes.
Os músicos favoritos de Charlie Parker "Bird", segundo os seus biógrafos, eram Johannes Brahms e Arnold Schönberg, além de Paul Hindemith e Igor Stravinsky. E, no Jazz: Duke Ellington.
Regressemos, entretanto, a Frank Kimbrough, que começou a tocar profissionalmente quando deixou a faculdade. Formou o seu primeiro trio e mete-se na estrada, "on the road", como no livro de Jack kerouack, da "beat generation". Pára primeiro em Chapell Hill, depois em Washington D. C., onde encontra, imaginem, a pianista-cantora Shirley Horn, que o apoia, tornando-se uma entusiasta do jovem colega.
Frank trabalha com o trio desta mulher notável (1934-2005), cuja música é eterna, amorosa. A voz afinadíssima parecia pertencer a uma cantora de Gospel. E o piano lá ao fundo, discretíssimo, seguindo as mãos elegantes da cantora que tocava com parcimónia. E cantava envolventes baladas.
Depois desta experiência com Shirley Horn, Kimbrough consegue vários empregos de curta duração, alguns "gigs" e colabora com Buck Hill (carteiro durante o dia e saxofonista tenor, com som bom e forte, à noite), Anthony Braxton (multi-instrumentista e um dos improvisadores vanguardistas do Jazz), Paul Horn (1930-2014, flautista, saxofonista e compositor) e ainda com o trompetista/ cornetista Webster Young (1932- 2003). Esta rodagem foi a sua verdadeira pós-graduação, mas a cena de Manhattan era muito, muito apelativa. Chegou a Nova Iorque em 1981 e procurou os "mestres do piano" Paul Bley (um dos participantes no movimento do Free Jazz, 1932- 2016) e Andrew Hill (pianista e compositor que conservou o gosto picante das melodias com balanço das suas origens haitianas e recorreu às rítmicas do Be Bop e Hard Bop, e um apaixonado pela música dos seus mestres, nomeadamente Thelonius Monk, 1931-2007).
Admito que Bley e Hill contribuíram muito para o aprimoramento do estilo pianístico de Frank Kimbrough.
Em 1985, no Festival de Jazz de Jacksonville, ganhou o "Great American Jazz Piano Competition"! E no ano seguinte, por indicação de Shirley Horn (outra vez ela na vida de Kimbrough), começou a gravar como líder dos seus próprios grupos ou integrado noutros projectos como co-líder, cerca de duas dezenas de discos, como foi com a orquestra de Maria Schneider.
Nestas notas necessariamente breves e, como tal, lacunares, eis alguns momentos fundamentais da carreira deste pianista:
- Membro fundador e compositor residente do "Jazz Composers Collective" (1992- 2005);
- Em 2017, Frank Kimbrough foi convidado para participar no programa do Centenário de Thelonius Monk, que ocorreu no "The Jazz Standard", em Nova Iorque. Para a celebração, o pianista formou uma banda com os saxofonistas Scott Robinson, Rufus Reid (em contrabaixo) e Billy Drummond (em bateria). Depois do concerto, um amigo de longa data sugeriu-lhe que gravassem todas as composições de Monk. Felizmente, conjugaram-se algumas boas vontades e o projecto foi concluído, tendo originado o notável "MONKs DREAMS: The Complete Compositions of Thelonius Sphere Monk. Uma caixa com 6 CD e uma brochura contendo preciosa informação. Uma companhia para certas solidões e um guia indispensável para a beleza agreste da música do compositor menosprezado: Monk.
Um verdadeiro testemunho musical e poético da importância da memória histórica. Um contributo fundamental para o conhecimento da obra colossal de um génio: Thelonius Monk.
(Fonte bibliográfica: http://home.earthlink.net/-fkimbrough/FKbio.html)
Kimbrough, Monk e Poesia
Você compreende Thelonius Monk? / Não. Você não o entende. / Até lhe desagrada e o inquieta/ aquela forma esquisita/ de ter o passo oblíquo e trôpego/ e de deixar tombar a nota/ não quando você a espera, / mas um momento antes ou depois, /sempre depois se a espera antes, / sempre antes se a espera depois.
(excerto do poema "Hackensack" de Rui Knopfli - poeta de Moçambique, 1932-1997)
Um dos nomes cimeiros da História do Jazz é, certamente, o de Thelonius Sphere Monk, pianista e compositor. Raramente, um músico conseguiu calcular o peso da dissonância, a densidade do ataque, a admirável gestão do silêncio como elemento constitutivo do discurso musical. A noção da relação subtil entre o espaço e o tempo e a beleza urgente que daí resultaram, nenhum, mesmo nenhum músico - nem mesmo Parker - tinha sentido antes dele. E no plano estrutural - "integração de estruturas assimétricas (móveis) a uma estrutura global fixa (simétrica)", constitui, provavelmente, o seu enriquecimento mais estimulante. Daí que, para os especialistas e estudiosos mais diferenciados (Gerber, Hodeir, Carles), Monk seja considerado não apenas um notabilíssimo inovador, mas, sobretudo, um músico muito avançado para o seu tempo. Monk, disse Alain Gerber, "teve razão antes do tempo". E é considerado pelos mais atentos um dos maiores génios da música do século XX, compositor inspiradíssimo, chefe de orquestra respeitado.
No entanto, Monk conhece anos de miséria (1944-1954), "passeando por Harlem o seu enorme corpo linfático, olhando para o mundo com os seus olhos indiferentes, trabalhando por acaso, sobrevivendo por milagre", como escreveu Lucien Malson.
Foi vítima da incompreensão das multidões. Não teve discípulos, na medida em que o seu individualismo, a sua personalidade fortemente marcada, a seriedade face à sua arte, desafiava a imitação. Monk é o solitário total, quase não tem acompanhantes e companheiros de caminhada. "É aquele que perturba" (André Hodeir dixit).
E dele fica a beleza agreste da sua música eterna.
Interrogo-me muitas vezes - baixinho - ao ouvir Monk, Liceu Vieira Dias, a "ouver" Glauber Rocha, e a ler Rui Knopfli, Mário de Andrade, Viriato da Cruz, Frantz Fanon, - gente imensa ¬-, a quem se antevia futuros brilhantes "se a sua grande desgraça foi desamparo de Sandu ou se é já própria da raça", como o Sô Santo.
P.S. Em Outubro de 2019, estive na Ilha Terceira, Açores, em Angra do Heroísmo, para assistir à 21.ª edição do AngraJazz.
Foram belas e longas as noites de Angra. Com disponibilidade total para ir até ao fim da música, lembrei-me muito de Thelonius Monk, que nunca vi porque o dinheiro era curto para ir até Lisboa, onde tocou por iniciativa do enorme Luiz Villas-Boas, no Festival Internacional de Jazz de Cascais, em Novembro de 1971.E lembrei-me de Monk porque a organização teve o cuidado de convidar o pianista e educador americano Frank Kimbrough, um músico com memória, que já conhecia das minhas andanças nocturnas à procura do Jazz, quando ele recriou e divulgou a obra de um génio esquecido: Herbie Nichols.
Aguardava pela noite de Sexta, 4 de Outubro, com uma enorme expectativa e ansiedade quase infantil. Monk é um dos meus compositores predilectos.
Não é possível traduzir-se por palavras adequadas o que representou para mim o Frank Kimbrough Quarteto a tocar Monk, com Scott Robinson (sax e trompete), Rufus Reid (contrabaixo) e Billy Drummond (bateria).
A noite ficou-me agarrada à alma e vive comigo. Voltei a assobiar o "Round Midnight" ...nos meus silêncios nocturnos.
Depois do concerto de Frank Kimbrough e do autógrafo respectivo, só faltava a caixinha com os 6 CD. No hotel que aloja músicos e jornalistas, com vista para o mar, falei bastante com o pianista e consegui "arrancar-lhe" a tal caixa, uma das suas últimas relíquias. Com desconto de amigo...