Ao olharmos para alguns (poucos é verdade) exemplos de boa governação em países como as Ilhas Maurícias, o Botswana, a Namíbia ou Cabo-Verde, percebe-se que sendo a África globalmente atrasada e subdesenvolvida, nem todos os africanos têm, porém, a mesma cabeça.

Não sendo todos iguais, logo não podemos olhar para o resto de África através do nosso umbigo, nem ter a tentação de olhar para o resto do continente através das decrépticas imagens projectadas pelo espelho de Angola.

Proferida pelo Prof. Carlos Feijó, a frase não deixa, todavia, de representar um desafio para a reflexão das nossas elites. Mas, uma reflexão que se exige desapaixonada, despartidarizada e, sobretudo, sem a influência dos habituais reflexos condicionados, que tendem a moldar o pensamento dos nossos políticos, governantes e intelectuais.

Tornou-se, por isso e desde logo, surpreendente ver Carlos Feijó reservar para si a resposta a uma das perguntas base do Congresso por si dirigidas à plateia: "quem tem mais poderes... é o Presidente da República, ou o Presidente do MPLA? Eu não vou responder...eu tenho a resposta..."

Depois de ter tido a hombridade intelectual de rejeitar um cargo ministerial numa superior demonstração de que "há mais vida para além do Governo", não menos surpreendente foi também ver António Paulo recusar questionar antigos professores para evitar causar-lhes "incómodos", como se o desenvolvimento da ciência não fosse uma sucessão permanente de superação de (alguns) mestrandos em relação aos mestres.

Não sendo certamente esta a visão deste credenciado jurista, admiti-lo seria o mesmo que reconhecermos que Albert Einstein não teve professores, que Marcelo Caetano, aluno de Oliveira Salazar, não teve, como acabou por ter, uma influência imorredoira na melhoria do direito administrativo, ou que Edgar Cardoso, sem ter sido um aluno singular, não poderia ter sido, como foi, um dos mais notáveis engenheiros de construção civil do mundo lusófono.

A verdade é que aquele "incómodo" pode ter gerado a perda de uma excelente oportunidade para antigos professores serem confrontados com um "afrontamento", que figuras com a dimensão intelectual de António Paulo, podem e precisam de encorajar para o institucionalizar como tradição académica.

Ao lançarem o desafio que lançaram, Carlos Feijó e António Paulo provocaram divergências no pensamento jurídico-político vigente, que - sem as confinarmos à sua dimensão estritamente técnica - devem proporcionar um debate mais alargado à volta de uma das causas do nosso atraso: a natureza do regime.

Tendo o MPLA em 1992 deixado formalmente de ser "a força dirigente da Nação", a abordagem feita por queles dois juristas, tem o mérito de abrir as comportas para um debate do ponto de vista jurídico, mas também do ponto de vista político acerca da alegada supremacia do poder do Presidente do MPLA sobre o poder do Presidente da República.

E do ponto de vista político também porquê?

Porque muitas das decisões assumidas pelos sucessivos PR assentam mais em razões de ordem política e menos em razões de natureza jurídica. Exemplos?

Não foi a atípica revisão da Constituição em 2010 guiada pelo interesse maior de conferir ao antigo Presidente a imagem de uma figura politicamente omnipresente e omnipotente?

Não quis o Presidente do MPLA, depois das eleições de 2017, continuar a ter nas mãos um comando político à distância para, a partir de casa, continuar a dirigir o país?

Não quis o Presidente do MPLA tentar impor, a todo o custo, um modelo de liderança bicéfala em Angola, fazendo prevalecer a sua visão sobre a nova governação?

Com seguidores desesperados e a amotinarem-se em catadupa, vontade para tudo isso não lhes faltou, mas, em menos de um mês, o que veio a acontecer?

Aconteceu que figuras representativas da história do MPLA, como Lopo do Nascimento, se colocaram na linha da frente para dar um murro na mesa e declarar a sua solene e inequívoca oposição à existência de um regime bicéfalo em Angola.

Aconteceu que, ainda antes da investidura do novo Chefe de Estado, na sequência das advertências feitas ao antigo Presidente por um grupo de "senadores" no famoso almoço do Palácio, o seu sucessor, em dois tempos, reduziu a pó, parte substantiva do pacote legislativo que aquele havia cozinhado na véspera das eleições.

Aconteceu que a partir da entrada em funções de um novo Presidente da República, foi este, sem pedir licença ao MPLA, quem passou a mandar no país!

A alegada superioridade do poder dos estatutos do MPLA, na verdade, ao longo de anos por diversas vezes tem sido diluída pela legítima sobreposição dos poderes constitucionalmente outorgados ao Presidente da República, que rege a sua actuação pela Constituição como lei mãe da Nação, e não pela cartilha partidária.

Não admira, por isso, que, desde a I República, Agostinho Neto, na condição de Chefe de Estado, tivesse ultrapassado pela direita o MPLA, sem que este se tivesse apercebido que estava a ser "matabichado"...

Foram também motivações essencialmente políticas que, vezes sem conta, levaram José Eduardo dos Santos a fazer e a desfazer o que entendia ser melhor para a governação, sem dar satisfações ao MPLA.

Nalguns casos, provavelmente não poderia ter sido de outra forma, estando, de resto, a ser assim também com João Lourenço, que, perante as exigências de uma governação que se requer prática, ágil e dinâmica, já deu mostras de que não tem tempo para estender a passerelle ao MPLA de cada vez que tem de tomar uma decisão.

Perante o questionamento de alegados excessivos poderes concentrados no Presidente da República, o aprofundamento da democracia e do Estado de Direito parece surgir agora como o nosso maior desafio para travar o avanço de uma das causas do atraso de um regime, que se mudou na forma, em muitos pontos, parece permanecer igual na sua natureza.

Mas, este pode não ser e, certamente não será, o único capítulo da nossa trajectória política em que os espelhos do passado se comportam como agentes do atraso.

Como, de resto, acaba de acontecer agora, depois do MPLA, a propósito dos acontecimentos de Cafunfo, pelas piores razões e sem haver qualquer relação de nexo e causalidade, ter decidido "desangolanizar" o líder da UNITA.

O recurso a essa tese é inconsistente, denota perda de controlo, mas pode acabar por rebentar por dentro com o efeito de uma bomba de neutrões.

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