Abusos desta índole pelos tribunais comuns deveriam ser liminarmente rechaçados pelos órgãos judiciais competentes que deveriam agir no caso com a mesma celeridade com que agiu o Tribunal de Relação de Luanda que, de pronto, tornou público o Acórdão que se decidiu a aceitar aquela tresloucada Providência Cautelar. Não o fazendo, corre-se o risco de permitir passivamente a introdução de vícios grosseiros na administração da justiça e perde-se uma soberana oportunidade de se produzir jurisprudência preventiva contra abusos cometidos por órgãos de justiça, tendo sempre em conta que juízes não são deuses, mas simples seres humanos mortais, tal como nós, passíveis de errar e errar grosseiramente, como no caso em epígrafe. Infelizmente, destes órgãos judiciais veio apenas um silêncio cúmplice ensurdecedor, embrulhado em pacote cínico corporativo que, em último ratio, denunciam o quanto o nosso sistema judicial anda atrelado ao poder político que solapou num só golpe a independência dos tribunais e distorceu os mecanismos de peso e contrapeso que deveriam ser inalienáveis num Estado Democrático de Direito de jure e de facto. Fica assim demonstrado que o Estado Democrático de Direito em Angola está, de facto, ferido de morte, colocando-se como premente a necessidade de encetar reformas que permitam resgatá-lo das garras dos seus ferozes algozes.
Ficaríamos, entretanto, parcialmente descansados se este bizarro acontecimento fosse um acto isolado nesta visível tentativa, nada racional, de condicionar um amplo debate pela sociedade avisada sobre estas propostas de alteração do Pacote Legislativo Eleitoral. O objectivo deste debate seria a possibilidade de aportar mais transparência, lisura, integridade e justeza aos processos eleitorais, de modo a afastar crónicas suspeições que reiteradamente condicionam a aceitação dos resultados por todos os actores, como vemos nas verdadeiras e adultas democracias. Infelizmente, vemos paralelamente a Providência Cautelar, outras acções que, em última instância, concorrem, de igual modo, para escamotear o debate, subtraindo-o do contraditório e do pluralismo de ideias sobre a forma de tornar mais transparentes e aceites por todos os nossos processos eleitorais. Dentre estas acções paralelas, figuram o vergonhoso solilóquio do ministro Adão de Almeida, na TPA, sobre as propostas de alteração das leis do Pacote Eleitoral apresentadas pelo Executivo, numa arena sem contraditório, em que o ministro de soslaio ou nem por isso se referiu, amiúde, às propostas de alteração contidas nos projectos da UNITA, sem que esse proponente tivesse a mínima possibilidade de contrapor. Não será isso uma tentativa nada disfarçada de escamotear o debate sobre matérias importantes que têm a ver com a salvaguarda do Estado Democrático de Direito? Outra acção que facilmente se enquadra neste esforço de escamotear o debate é a violência gratuita e desproporcional desferida pela Polícia Nacional em Caxito contra militantes da UNITA que se reuniram em vigília em homenagem a Raul Danda e aproveitariam a ocasião para fazer reivindicações legítimas sobre eleições transparentes.
Associados estes três factos, o sentimento que nos sobra é de uma grande preocupação. A questão que se coloca é a seguinte: Se o objectivo que perseguem ambos os proponentes destas alterações ao Pacote Eleitoral é trazer mais transparência aos processos eleitorais por que razão o Executivo se esmera tanto nos seus esforços para ofuscar o debate? Quando colocamos esta questão no vazio, as respostas que o eco nos devolve não são nada tranquilizadoras e apontam para agendas tenebrosas que visam tornar as eleições previstas para 2027 as mais opacas de sempre, o que indubitavelmente significa a antecipação da fraude eleitoral numa dimensão que pode bem ultrapassar a fraude eleitoral descarada observada em 2008 que, em minha opinião, nunca foi superada. Senão vejamos: um elemento nevrálgico do processo eleitoral propriamente dito é o escrutínio. Podemos dizer, grosso modo, que as eleições só são transparentes se todas as etapas desde o Registo Eleitoral forem transparentes. Por outro lado, podemos ter diversas etapas do processo com algum grau de transparência, mas, se o escrutínio não for transparente em toda a linha todo o processo eleitoral, torna-se obscuro.
Os check-points do escrutínio são as estações de apuramento localizado, isto é, o apuramento da Assembleia de Voto (AV), o apuramento municipal e o apuramento provincial. Neste sentido, a verificação da correcção é um exercício matemático simples, sobretudo quando suportado por meios informáticos, que consiste em conciliar o apuramento global nacional com os apuramentos localizados, isto é, da AV municipal e provincial. De há uns anos a esta parte, começou-se a falar da necessidade da simplificação de algumas operações eleitorais, de modo a chegar-se mais rápido aos resultados eleitorais. É uma preocupação que faz todo o sentido, mas o caminho que está a ser seguido está longe de ser pacífico. Assim, iniciou-se um exercício que visa, exactamente, a simplificação do processo e, neste ínterim, o elemento mais sacrificado tem sido o escrutínio com a supressão dos seus conhecidos "check-points". Em cada ciclo eleitoral, foram sendo introduzidas alterações à Lei Orgânica sobre Eleições Gerais (LOEG). Em 2017, entendeu-se desnecessário o apuramento provincial; em 2022, suprimiu-se o apuramento municipal e agora chegou a vez da supressão do apuramento da AV, com a eliminação das actas-síntese. Este era o único reduto que ainda podia conferir alguma transparência ao escrutínio. O que virá a seguir? Será, certamente, o dilúvio, com a supressão das eleições. Se isso não é obscurecer os processos eleitorais, então é o quê?
A transparência dos processos eleitorais é fundamental para garantir a sua integridade, asseverar a conformidade dos resultados com a efectiva vontade popular e, desta forma, garantir a legitimidade dos eleitos para exercer as funções de representação. Ano após ano, ciclo eleitoral, após ciclo eleitoral têm recaído sobre as nossas eleições fortes suspeições de irregularidades e mesmo de fraude que põem em causa a legitimidade dos eleitos. Este clima de suspeição sobre as eleições não interessa a ninguém e devia incomodar particularmente os eleitos cuja legitimidade é continuamente questionada. Isso deveria convocar-nos a todos, para primarmos por processos eleitorais verdadeiramente transparentes, cuja lisura nunca será questionada. Nós, que gostamos tanto de imitar os portugueses, já nos questionamos por que razão a Comissão Nacional de Eleições (CNE) de lá nunca é sequer mencionada durante as eleições naquele País? Não seria essa uma lição que deveríamos extrair da experiência democrática portuguesa, que curiosamente só tem 50 anos?
A forma como o Executivo pretende conduzir o debate em torno do Pacote Eleitoral não é um caminho conducente a aportar maior transparência e lisura aos nossos processos eleitorais. Pelo contrário, se insistir nesta via, o efeito será exactamente contrário e longe de removermos as habituais suspeições, iremos replicÁ-las e, em decorrência disso, a legitimidade dos eleitos será sempre questionada por extensos sectores da sociedade. Nenhum político, digno do nome, deveria sentir-se confortável nesta condição incómoda. Se, entretanto, o MPLA e o Executivo que suporta persistirem neste caminho tortuoso, suprimindo os espaços onde pode ocorrer o debate estruturado deste Pacote Eleitoral, ora instrumentalizando os tribunais, ora restringindo o debate na Assembleia Nacional até com ameaças de punições descabidas contra deputados, ao povo soberano restará o debate não estruturado nas ruas com todas as consequências que daí decorrem.
Cabe ao Executivo impedir que isto aconteça, bastando, para o efeito, alinhar as suas acções com todos aqueles que verdadeiramente perseguem o objectivo genuíno de trazer mais luz e lisura aos nossos processos eleitorais. Felizmente, estes são fáceis de identificar, dispensando qualquer busca microscópica para o efeito.n
*Médico, docente universitário; Deputado a Assembleia Nacional pela UNITA
Tribuna de ideias
Providência Cautelar contra o encontro organizado pela OAA - que leituras?
A recente Providência Cautelar movida pelo Tribunal de Relação de Luanda contra um evento organizado pela Ordem de Advogados de Angola (OAA) que se propunha debater as propostas e projectos de Lei apresentados à Assembleia Nacional pelo Executivo e pela UNITA, respectivamente, é um dos mais graves, grosseiros, toscos e obtusos atentados desferidos ostensivamente contra o Estado Democrático de Direito nos últimos tempos. Grave por ter sido desferida por uma instituição a quem compete defender o direito e administrar a justiça; grosseira porque continha implícita uma indicação subliminar para o recurso à violência policial contra um acto que se afigurava absolutamente pacífico e significava tão-somente um exercício de liberdades fundamentais cristalinamente consagradas pela Constituição; tosca pelos argumentos estapafúrdios evocados pelo tribunal para aceitar a acção impetrada por um conjunto de cidadãos "anónimos"; obtusa porque é dirigida contra um colectivo de operadores do direito tratados no caso como se fossem ingénuos conhecedores da lei e promotores de eventos infantis e pelo desrespeito abusivo à consciência cidadã e ao exercício da cidadania.
