Por inerência profissional, sou uma estudiosa do som e de sons. Desde que voltei, os sons das sirenes enchem-me os ouvidos. Moro a poucos metros de um hospital, e a mais ou menos dois quilómetros de um outro. As sirenes das ambulâncias tornaram-se a banda sonora do meu dia-a-dia. Nas últimas nove semanas, de tanto ouvir esse som, aprendi a distinguir essa música longa, como uma dor lenta, que se ouve repetida de um tipo de ambulância, ao lamento agudo que floresce numa outra ambulância, e sucessivamente uma orquestra de alarmes.

Agora, em plena revolta social, com manifestações em mais de 140 cidades americanas e saques desenfreados, aqui e acolá, as sirenes só aumentaram mais ainda. Na segunda-feira, depois de uma calma manhã de sol, as sirenes dos carros da polícia cortavam o ar, acompanhados do zunir aéreo das hélices dos helicópteros. O alarme estridente e constante dos bombeiros não ficava muito atrás na intensidade. Passado uma semana, depois da morte de George Floyd, em Minneapolis, no dia 25 de Maio, esta segunda-feira revelou-nos um país todo ao avesso.

Milhares de pessoas manifestando a sua resistência à violência da polícia contra os negros e a favor de um sistema mais equitativo. Manifestações exigindo um fim da violência sistemática do estado contra as minorias, em tudo - desde o sector de educação até acesso a alojamento e o exercício dos seus direitos civis. A maioria dos manifestantes agem de maneira pacífica. Também existe mobilização de pessoas para ajudar não só os manifestantes, mas, por exemplo, as famílias que estão a passar fome desde a pandemia, e, provavelmente antes, que dependem do almoço das escolas que, entretanto, não estão a ser servidos por causa da crise nas ruas. Centenas de pessoas estão a limpar tudo, com empresas saqueadas, e os protestantes e voluntários, dizendo que as vidas valem mais do que o seu valor imobiliário. Ao mesmo tempo, há pessoas que criam caos de propósito.

Na confusão aqui em Chicago, foram detidos três indivíduos com armas ilegais e com registos criminais prévios, todos brancos, que vieram roubar e aproveitar-se da situação. Em Minneapolis, a polícia encontrou carros roubados sem matrículas e cheios de pedras e tijolos, cujos condutores tentaram fugir. São pessoas de outros estados que vieram fomentar violência em nome de supremacia branca, alguns em nome de uma "segunda guerra civil." E eles não só são apoiantes do actual Presidente, como também estão ligados aos grupos internacionais.

Se a pandemia, por um lado, é uma evidência de globalização, e das suas desigualdades, as manifestações também nos mostram outra ameaça global. Por mais que nós, americanos, tenhamos que nos confrontar com a nossa história violenta e colonial, com a peculiaridade do direito individual às armas, e termo-nos de nos enfrentar a nós mesmos, também estamos perante o problema mundial do crescimento de populistas autoritários em democracias: aqui, no Brasil, na Hungria ou na Rússia. Vejo nas acções do Presidente dos EUA não somente uma falta de liderança, mas também se detona um plano a desabrochar: criação e aproveitamento político do caos. Pior ainda, é que ele tem apoiantes nisto: na segunda-feira, quando chamou as forças de segurança dos EUA para afastar as pessoas em frente da Casa Branca, para que ele pudesse fazer uma "pose fotográfica" à frente de uma igreja, fê-lo com a ajuda do procurador-geral William Barr e a participação do general Mark E. Milley, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Norte-Americanas, que, apesar de ter uma posição supervisor e não operacional, mas que saiu à rua vestido com farda militar.

Nestes dias, o som das sirenes não é somente sinal de mais um caso de Covid-19, talvez da morte e da crise social de pandemia. Noto nestas sirenes adicionais o som do terror de um estado agindo contra a sua população e um alarme a anunciar um senhor na Casa Branca que quer dominar como ditador em vez de governar. Os EUA enfrentam desafios enormes. Uma violência nova, mas vindo de um sistema antigo de colonialismo interno. Se isso não bastasse, temos um Presidente com apoiantes aqui e fora que estão a derrubar as nossas instituições. A pandemia já nos estava a mostrar o que os últimos quarenta anos de neoliberalismo fizeram ao chamado "sonho americano." Será que agora a morte violenta de Floyd e a calma chocante do Derek Chauvina enquanto o matava vão acordar-nos e fazer ver que, muito mais do que um sonho individual, temos de construir uma realidade que sirva a todos? n

*Marissa J. Moorman - autora e professora de História de África na Indiana University. Escreveu, em 2008, Intonations: A Social History of Music and Nation in Luanda, Angola, 1945 - Recente Times, e, em 2019, Powerful Frequences: Radio, State, ande the Cold War in Angola, 1931-2002.