Os efeitos perniciosos desta prática desaguaram num lago fétido que é a corrupção sistêmica que corroeu profundamente os fundamentos do Estado angolano e contribuiu significativamente para a precipitação da crise económica e social de dimensões incalculáveis que se agudizou em 2014. Se há um lado bom da crise é, sem dúvida, a tomada de consciência por parte da sociedade em relação a estas práticas danosas. De facto, as dificuldades que a crise impõe aos cidadãos, na sua busca por respostas para os inúmeros problemas que enfrentam, levam-nos a conclusões que são óbvias:
Todos somos contribuintes, por isso o dinheiro público pertence-nos. Aos servidores públicos, nos mais diversos níveis da administração pública, a quem é confiada a gestão do nosso dinheiro cabe a prestação regular de contas.
Por isso, é notória a emergência de uma sociedade inquieta, capaz de questionar os actos dos seus representantes e cresce o debate multiforme em torno das questões políticas, económicas e sociais que marcam a nossa vivência enquanto sociedade. Esta efervescência social é salutar para o aprofundamento e consolidação da nossa democracia e tem o condão de exercer algum controlo sobre as instituições.
A Assembleia Nacional é, à luz da Constituição, um órgão de soberania, representativo de todos os angolanos, que exprime a vontade soberana do povo e exerce o Poder Legislativo do Estado. A Constituição confere à Assembleia Nacional competências político-legislativas e de controlo e fiscalização, por meio das quais ela "Aprova o Orçamento Geral do Estado" e "analisa a Conta Geral do Estado e de outras instituições públicas que a lei obrigar". Por esta razão, a Assembleia Nacional, a casa onde se exprime a democracia, é rigidamente escrutinada pelos cidadãos, não sendo, por isso, de estranhar que o desempenho e o comportamento dos deputados sejam frequentemente questionados, afinal são eles os representantes do povo.
Vêm estas considerações a propósito da polémica que eclodiu estes dias com a revelação num dos jornais expressivos de Luanda de um suposto subsídio ou benefício pecuniário atribuído ao Presidente da Assembleia Nacional no valor de 17 000 000 (dezassete milhões) de kwanzas por mês que consta, ao que parece, no Orçamento da Assembleia Nacional (OAN) de 2019. Esta revelação gerou, obviamente uma onda de indignação, absolutamente compreensível se considerarmos que o país vem conhecendo há cerca de cinco anos recessões sucessivas que têm obrigado o Governo a tomar medidas de austeridade com vista a reverter esta tendência económica negativa. A revelação surpreendeu até os deputados, porque, uma vez que o OAN é aprovado pelo plenário da Assembleia, não havia memória de que constava da proposta levada à aprovação esta referência. Na verdade, as sessões de aprovação do OAN têm sido marcadas por lamentações dos deputados pela corrosão de direitos que vêm assistindo, resultado das medidas de austeridade, pelo que é quase impossível que uma tal referência inscrita na proposta de OAN escapasse ao radar dos deputados. Por isso, faz todo o sentido que a reacção inicial dos deputados tenha sido a de negação da existência de tal rubrica no orçamento, mas, em nome da transparência, competia a administração parlamentar prestar os esclarecimentos necessários para desfazer o equívoco.
Esta semana, com algum atraso, diga-se, os órgãos competentes da Assembleia pretenderam através de um comunicado eliminar definitivamente o incêndio deflagrado, prestando, por via de um comunicado, o esclarecimento que se impunha. Infelizmente, longe de fazer luz sobre o assunto, o comunicado da Assembleia Nacional adensou ainda mais as dúvidas e fez crescer as especulações em torno da gestão dos fundos colocados pelo Estado à disposição da Assembleia Nacional e deixando embaraçados e em posição desconfortável os deputados que, a quente, reagiram negando a existência desta rubrica no OAN.
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*Deputado à Assembleia Nacional pela UNITA