Estou satisfeito com a evolução que Angola sofreu desde então? Satisfeito, sim e não. Porque, como tenho dito a muita gente, em particular entre os meus familiares, amigos e companheiros da luta, o que está a suceder agora não poderia ter sido de outra maneira, tinha de ser assim! E a pergunta deles é: assim, como? O País não existe, não está a funcionar? Convenhamos que sim, mas com enormes dificuldades, muita desonestidade, deficiências de vária ordem e generalizado descontentamento.

Quando assentámos arraiais em Luanda, depois do golpe de Estado de 25 de Abril, o MPA vinha já conotado como socialista/comunista, e isso assustou muitos habitantes, principalmente entre os colonos, alguma pequena burguesia nacional/classe média (negros, mestiços e brancos), e o povo em geral, perante discursos anti-religiões, de socialização de bens e propriedades; a FNLA, com discursos e comportamentos racistas regionalistas e belicistas; a UNITA, com discursos contraditórios em umbundu e português no que respeitava à política de aliciamento dos colonos (em português o discurso era um, em umbundu, outro. Isso, acrescido aos combates de rua, em Luanda, entre as tropas dos movimentos, em particular entre as da FNLA/ELNA e do MPLA/FAPLA, provocou a debandada massiva dos colonos e de muitos quadros entre os superiores, funcionários públicos da Saúde, Educação, administração em geral, técnicos médios do Comércio, da Indústria, da Agricultura, etc., etc., que dirigiam e enquadravam o funcionamento multissectorial do "Estado Angola" na República Portuguesa. Em 1973, o País tinha atingido um desenvolvimento económico e financeiro superior ao da "metrópole" e de todas as outras colónias: era já auto-suficiente.

Entretanto, foram feitas tentativas para a reconciliação dos partidos inimigos de que resultou uma plataforma comum que os levou ao Alvor/Portugal, onde foram acordados os passos para uma real e duradoura reconciliação: data da independência, a 11 de Novembro de 1975); formação do Governo de Transição integrando os três movimentos e o Governo português; elaboração de uma assembleia constituinte; retirada das tropas coloniais e, finalmente, declaração da independência.

Depois do solenemente acordado em Alvor, os presidentes dos partidos, regressados ao País, puseram para debaixo do tapete aqueles acordos. Cada um deles queria ser Presidente da República com motivações político-ideológicas díspares e aparentemente respaldados pelas potências internacionais e pela racista África do Sul. Em Luanda, o MPLA/FAPLA, apoiado pela maioria da população, com a simpatia de alguns dos governantes portugueses (o Almirante Rosa Coutinho) e com o apoio de um contingente das Forças Amadas de Cuba, batia-se contra as forças da FNLA/Zaire e da UNITA/África do Sul, que pretendiam entrar em Luanda antes de 11 de Novembro e acabou por criar as condições para a declaração unilateral da independência.

Fizemo-lo com pompa e circunstância no largo 1.º de Maio, com a declaração solene da independência pelo Dr. Agostinho Neto, o içar do nosso símbolo maior, a nova bandeira da Angola independente e o entoar do hino nacional ao som dos disparos festivos e das explosões dos obuses em Kifangondo, onde tínhamos desbaratado os invasores da FLNA/Zaire seguida. A bandeira nacional portuguesa, a das Quinas, foi simbolicamente e, em "privado" abaixado e levado com as autoridades coloniais num navio, zarpando depois rumo à "Metrópole".

E constituímos o primeiro Governo da República Popular de Angola, a Assembleia do Povo, as Forças Armadas, a Polícia Nacional e outras instituições nacionais com os quadros da guerrilha e com os técnicos e funcionários residentes herdados da ex-colónia (pretos, brancos e mulatos), que resolveram ficar na terra que os viu nascer e que consideravam ser sua. E foi com uma grande parte desses quadros que não fugiram que faculdades como as de Medicina, de Direito, de Engenharia e alguns institutos médios já existentes continuaram a funcionar e a formar quadros.

Mas muito melhor, eficiente e eficazmente, teria sido o início da governação do País se, no processo de descolonização, os movimentos se tivessem, séria e realmente concertado, e se não nos tivéssemos envolvido em combates de rua na capital, motivo principal que levou à fuga da maior parte do "Know-how" que, com a força de trabalho da imensa maioria da população, haviam construído o "País" que tínhamos encontrado e ganho através de mais de 14 anos de árdua e justa luta de libertação armada e não armada e que devíamos, doravante, tomar entre as nossas mãos.

Os da guerrilha, com experiência e capacidade para dirigir um Estado, éramos um punhado; dirigir um movimento de libertação com uma base fundamentalmente iletrada, a maioria camponesa, não foi fácil e exigiu de todos, mormente dos dirigentes da guerrilha, muito trabalho, sacrifício, engenho e arte, sempre com a firme convicção da vitória final, levasse o tempo que fosse preciso. Mas era tanta a euforia e a certeza de ser e estarmos habilitados e competentes, para tomar em nossas mãos a administração de um território estruturalmente desenvolvido deixado pelos colonos e que não era o que há anos tínhamos deixado quando nos exilámos e decidimos tomar como bandeira a luta armada para libertar o nosso povo do jugo e do féretro coloniais.

Hoje, há distância de quase meio século, penso o quão difícil teria sido (e foi) a Agostinho Neto tentar como e onde colocar alguns dos camaradas e companheiros de luta que não tinham as habilitações literárias e técnicas, até profissionais, para serem acomodados onde pretendiam e se julgavam capacitados e habilitados. É assim que alguns foram nomeados e empossados como prenda e reconhecimento pela participação na Luta de Libertação: ministros (entre os quais eu); directores de serviço; gerentes de empresas comerciais, industriais e agrícolas. É que o Camarada Agostinho Neto, então Presidente da República e do MPLA, pensava e acreditava, como ele dizia, na "capacidade criadora das massas"! Lembro-me de que me propôs promover a médico um enfermeiro que tivesse muitos anos de experiência! E, embora tivesse dito que, contrariamente a alguns países africanos, ele nunca nomearia um enfermeiro como ministro da Saúde, foi um enfermeiro que me substituiu.

As outras substituições que se foram fazendo nas estruturas do Estado e do MPLA obedeceram, em geral, a critérios político-partidários ao invés de, ao conhecimento, experiência e competência profissionais. E, assim, progressiva e paulatinamente, fomos descambando para a desgovernação, a partidarização do Estado, o compadrio, a bajulação, a direcção autocrática e o suborno corruptivo (os dez/trinta por cento); uma economia errática e baseada na exploração petrolífera, desleixando-se os outros sectores do desenvolvimento ao "deus dará" por de menor valia. Tal situação levou ao descrédito e ao descontentamento da maioria da população, sendo frequente ouvir-se frases saudosistas como estas: "quando é que acaba a independência"; "éramos felizes e não sabíamos"; "uma cambada de corruptos" e de "ladrões".

Dado o elevado grau de analfabetismo entre a população rural e dos bairros periféricos das cidades, lançaram-se campanhas de alfabetização, na qual se engajou a juventude; foram realizadas companhas de vacinação em massa no quadro do Programa Alargado de Vacinação (PAV) e além. A fuga de muitos médicos e outros quadros da Saúde, do Ensino e Educação e não só, levou a que recorrêssemos à República Socialista de Cuba e a outros países, para preencher o vazio deixado pelos portugueses e fazer funcionar, nos municípios, as estruturas sanitárias existentes, educativas e outras.

E a governação foi sendo feita com base em slogans político-partidários. Um deles, "a agricultura é a base, a indústria o factor decisivo", não passou, infelizmente, de slogan. A agricultura empresarial, que estava nas mãos de grandes agricultores portugueses e de pequenos angolanos, foi abandonada pelos proprietários; as grandes produções de café, sisal, algodão, arroz, cana-de-açúcar, frutíferas, etc., passaram para o Estado que, para tentar manter os níveis de produção ("copy past" do que se fez em Cuba), mobilizou o patriotismo e a militância para as campanhas de colheita do café, a apanha do algodão, o corte da cana-de-açúcar que não produziram os resultados esperados; em alguns casos, levou mesmo à danificação das plantas, ao abandono das plantações e, consequentemente, à baixa dos níveis de produção, distribuição interna e das exportações. Como "danos colaterais", a agro-

indústria baixou tremendamente, o que levou a que os produtos derivados que eram produzidos em Angola tivessem de ser importados. O mesmo sucedeu com a pecuária e com as indústrias conexas. E a agricultura familiar, que antes da independência participava numa parte não negligenciável na economia da colónia, foi descurada, produzindo apenas para o consumo real e simplesmente familiar. Enfim! Aquele esplêndido e mobilizador slogan não passou disso. Dinheiro vivo farfalhento e sonante, o eldorado, chamou-se petróleo.

No entanto, um outro tema recorrente, um "leitmotif", que pretendeu ilusoriamente ir ao encontro da vontade ou ânsia de criar riqueza para produzir empregos, foi o da imperiosidade de "endinheirar" a classe média, melhor dizendo, a classe dirigente e satélite, aproveitando o boom da produção e do preço do petróleo e fazendo jus à frase e ideia de Marx de "acumulação primitiva do capital". E daí a extravasão de tal conceito para o da riqueza desmesurada, despudorada e desavergonhada que tem vindo ao de cima como resultado de roubo peculato desfalques e chorudos "porcentos" das comissões da alta corrupção; à vista e ao conhecimento da esfera política dirigente e dos militantes que foram dizendo "amém, amém", em todas as eleições, aos feitos defeitos e contrafeitos dos dirigentes aos distintos escalões. Essa sofreguidão voraginosa não terá sido o desejo inconsciente, até sonho e vontade, de saciar a "fome ancestral" do que nos foi sonegado ao longo da ocupação e domínio coloniais? Não se exigia aos dirigentes e responsáveis a prestação periódica e regular de contas nem relatórios circunstanciais sobre a execução das tarefas e prazos de cumprimento. Era só meter a mão na massa, que muitos também o faziam. Uma rebaldaria, um fartar vilanagem, que agora se agrupa com o título "corrupção", bandeira que cobre o roubo ou peculato, como agora se diz, e que no meu tempo se dizia "desfalque". Tinha ou não de ser assim?

E que foi feito dos quadros do exílio e dos maquis, alguns valiosos, que regressaram ao País? Foram, em grande parte, ostracizados, combatidos e presos alguns, devido a dissidências internas nos partidos, mormente no MPLA (as Revoltas do Leste e Activa); não foram utilizados para a governação por razões políticas e ideológicas e, digamos mesmo, por questiúnculas pessoais. Foi pena; não eram muitos, mas podiam ter ajudado a pensar e a fazer a governação no sentido de mais objectividade menos pessoalismos e outros ismos (racismo, tribalismo, regionalismo e partidarismo) e maior exigência no que diz respeito à formação, ao conhecimento, à experiência, ao profissionalismo, à honestidade e ao patriotismo.

E agora? Devemos continuar a chorar o leite derramado? Há muitas gerações ainda, aí por diante. A maioria da população que é hoje jovem nada ou pouco sabe de "como se ganhou a nossa bandeira nem quanto custou a liberdade". Estudaram e estudam em escolas, institutos e universidades tanto aqui como fora do País; exercem profissionalmente em todos os ramos das Finanças, Economia, Educação, Saúde e das Comunicações; são criticamente exigentes quanto à condução da política governativa. Mas têm ainda de aperfeiçoar os conhecimentos adquiridos no nosso sistema de ensino, nem sempre com a qualidade necessária. Se e quando chamados a escolher os seus dirigentes, devem fazê-lo com inteligência e critérios de objectividade sobre a honestidade e as qualidades dos candidatos a postos de comando e direcção governativa ou administrativa.

Mas quantas gerações, depois da minha, serão necessárias para se alcançar tal desiderato: duas, três, quatro? À Juventude de hoje e à vindoura, deixo aqui o repto.