Não seria escândalo nenhum se considerássemos o acto enquanto tal como um duro golpe à democracia angolana - mais um entre vários - sobretudo se nos ativermos aos factos que foram tornados públicos, inclusivamente por este jornal, já de si esclarecedor de uma série de suspeitas em redor do juiz Manuel Pereira da Silva "Manico". Mas, sobretudo, não se respeitou um pressuposto importante: o da reputação ilibada da figura em causa, já que o juiz Manico foi durante dez anos presidente da Comissão Provincial Eleitoral (CPE) de Luanda e a auditoria às contas da sua gestão apontam para graves violações de procedimentos.

Mais: o anterior presidente da Comissão Nacional Eleitoral chegou a colocar em causa um conjunto de decisões tomadas pelo juiz Manico enquanto esteve à frente da CPE Luanda, por terem sido cabimentados valores e meios técnicos para apoio logístico e de mobilidade. Para quem não sabe, a província de Luanda ficou com mais de três mil milhões de kwanzas nas eleições de 2017, mas ainda assim surgiu "misteriosamente" uma dívida no valor de mil milhões de kwanzas. As explicações não convenceram a auditoria, nem tampouco o ex-presidente da CNE, cujas anotações ficaram registadas em carta dirigida ao juiz Manico enquanto presidente da CPE Luanda.

O juiz Manico beneficiou ainda de uma alteração pontual feita ao regulamento do concurso que o elegeu, alteração esta introduzida in extremis ainda por Rui Ferreira, que acrescentou o critério "experiência eleitoral" para precisamente dar vantagem à sua candidatura (?). Os anteriores presidentes não a tinham!

Se são levantadas todas estas reservas e não tendo ainda transitado em julgado todas as providências cautelares interpostas; havendo dúvidas inúmeras sobre a forma como o juiz Manico liderou a CPE Luanda, e tendo este sido questionado pelo anterior presidente da CNE sobre estas alegadas irregularidades, como se admite que a bancada parlamentar do MPLA ignore todos estes factos e, sozinha, permita a tomada de posse?! A resposta é óbvia: "Porque vivemos em democracia e em democracia contam as maiorias".

Ora, se contam as maiorias, qual o entendimento da bancada do MPLA sobre a necessidade de essas maiorias poderem ser eleitas de forma inequívoca e transparente? Porque, em democracias, não podem existir perguntas sem respostas e, neste caso, as perguntas são inúmeras: como foi possível permitir que, havendo suspeições levantadas ao nível da CNE em relação à CPE Luanda, se tivesse avançado com a posse do juiz Manico, havendo a possibilidade de queima de arquivos?! Porque depois de quarta-feira é ele o timoneiro da CNE e terá a prerrogativa de tomar decisões. O que faz uma raposa no galinheiro?!

Uma vez mais ficou provado que em política não existem verdades absolutas, tal como existem determinadas inverdades que, aos olhos dos políticos, se tornam verdades. Esta será talvez a sina de um país que chegou a ser ferido de morte por práticas governativas que não só lesaram o património de todos nós, mas adiou e retardou avanços necessariamente importantíssimos esperados há anos.

A verdade é que os políticos decidem e têm eles a convicção de estar a prestar um nobre serviço ao partido que representam, mas ignoram quem os elegeu, porque, ao não reagirem perante uma série de evidências de fraude, são cúmplices e os cúmplices em matéria criminal não ficam impunes.

O país precisa de acordar para a necessidade de uma viragem que não volte a colocar-nos numa teia de cinismos, porque até aqui tudo que se viu foi uma maioria política que deu guarida a "lampiões", legitimou os seus actos, defendeu-os em tribuna nacional. Hoje mais ninguém tem dúvidas disso, os próprios factos falam por si e este é mais um a acrescentar nos meandros da trama.