Nesse mesmo dia ouvi comentários indignados de jornalistas exigindo a tomada de medidas severas contra a empresa ou os empresários. Um amigo, de condição modesta, fazendo parte do grupo social erradamente designado por "povo" (povo somos todos nós), insurgiu-se contra os comentadores, dizendo que aqueles trabalhadores, maioritariamente originários de províncias do Sul do país, tinham pelo menos um salário, duas refeições por dia e um lugar para dormir protegido das enxurradas que assolam a gente pobre da periferia das cidades de Angola. Muitos outros, como toda a gente sabe, sempre segundo ele, seriam felizes se tivessem tal almoço todos os dias e um lugar para se abrigarem. Dias antes D. José Manuel Imbamba, numa atitude diferenciada da de outros líderes religiosos sempre muito elogiosos de qualquer feito do poder, do alto da sua autoridade de Presidente da CEAST, havia feito outra denúncia, essa relacionada com a crise de ética que atravessa o país. Uma crise mais a acrescentar ao conjunto que conforma a policrise de que dei nota na conversa anterior.

A pobreza, a inépcia das instituições e a corrupção cada vez mais generalizada explicam casos como o dos trabalhadores da empresa chinesa. Os jovens do Sul têm cada vez mais dificuldades em encontrar meios de vida nas suas regiões e preferem suportar humilhações como a dos empresários chineses a viverem desesperados e desesperançados nas suas comunidades, até para se libertarem da tirania dos mais-velhos conservadores. A fiscalização das actividades económicas ligadas a estrangeiros é, na realidade, um "negócio" lucrativo de muitos funcionários que fazem da gasosa a sua verdadeira remuneração, por isso, ainda segundo o meu interlocutor atrás referido, não seria descabido acreditar que a "escravatura" praticada pela empresa chinesa já seria do conhecimento de certas instituições desde há muito.

Por tais razões, a indignação dos comentadores contra os chineses deve merecer a seguinte interrogação: porque é que ela, a indignação, não é direccionada, também e sobretudo, para o Executivo angolano que não tem uma estratégia consistente de combate à pobreza e deixa a impunidade à solta, excepto quando isso não é politicamente conveniente? Sim, pergunta-se como não se resolvem problemas, entre muitos outros, como o tráfico de combustível, a pesca ilegal (apesar dos milhões gastos na compra de barcos que supostamente deveriam cumprir o papel que lhes estava destinado) ou a vandalização dos carris dos caminhos de ferro e dos postes de transporte de energia eléctrica, pateticamente atribuídos a um fantasmagórico terrorismo. Sabemos todos que os jornalistas e comentadores não podem tocar nesse tipo de assuntos, assim como sabemos que os chefes políticos e os governantes sabem que nós sabemos. E sabemos os custos que os angolanos terão de suportar com esta política na área da comunicação social, tão pecaminosa quanto a desastrada política educacional.
Atolado na policrise que gerou e a todos afecta, o partido no poder acumula incapacidades para a sua solução, a maior das quais reside na compreensão de que ela, a policrise, existe e resulta de uma série de equívocos em que está mergulhado na ânsia de manter a todo o custo um poder que está em desagregação.

O primeiro equívoco reside na assunção de que o MPLA é um Partido-Nação, possuidor e proprietário do país e do povo (o MPLA é o povo, é preciso não esquecer) e também de todo o património material e não-material, tudo por suposta herança do poder colonial - incluindo os comportamentos - e não dos povos e suas instituições subjugadas por esse mesmo poder. Entende que é legítimo colocar as instituições do Estado ao seu serviço, incluindo o sistema judicial e os serviços de Polícia e de Segurança, e até as Forças Armadas. Dá-se ao luxo de violar a Constituição a seu bel-prazer, como, por exemplo, no modo como tenta confundir a opinião pública sobre a institucionalização das autarquias, amordaça a comunicação social e desrespeita os partidos da oposição com assento parlamentar.
Esse sentimento de apropriação leva-o a assumir comportamentos condenáveis. O Presidente João Lourenço fez promessas nos primeiros tempos do seu primeiro mandato que não cumpriu, mas não prometeu cortar e muito menos lutar contra o despesismo. Assistimos ao longo dos anos - apesar dos recursos escassos - a gastos inaceitáveis com a construção de hospitais ou centralidades, a aquisição de viaturas de luxo ou ao aluguer de aeronaves ostentatórias para as viagens presidenciais, que, no seu conjunto, permitiriam pagar salários a milhares de professores e enfermeiros, que tanta falta fazem, durante anos a fio. Essa prática despesista transmite-se por osmose aos ministros e governadores, aos administradores de empresas públicas e aos embaixadores, justificando-se tal disparate com a necessidade de se dar "dignidade" aos cargos, sem se preocuparem com a verdadeira dignidade, conferida pelo trabalho e pela ética de que falava D. José Manuel Imbamba. Dispõem dos recursos do OGE como se fossem seus, e quando, por vezes, alguém mais avisado tenta dar outro rumo aos acontecimentos, soam os inevitáveis alarmes.

Esse sentimento de apropriação gera a chamada acumulação primitiva de capital à angolana. Na realidade, o que se tem assistido em Angola é a apropriação, ou seja, a síntese entre posse (relação de sujeito-objecto) e propriedade (inscrita no domínio do direito e reconhecida socialmente nos termos da tradição bantu) dos recursos do país por parte de políticos-empresários, através de instituições extractivistas. Eles agem como se fossem senhores feudais e não conseguem reproduzir o capital acumulado. É isso que explica as sinuosidades na implementação da economia de mercado e o fracasso da diversificação da economia, bem como a dependência desses políticos-empresários e até de simples agricultores, familiares ou não, ao poder deificado.

O poder do MPLA, enquanto foi hegemónico, impediu a emergência e desenvolvimento de outros sectores e actores autónomos da sociedade, quer fossem partidos políticos ou organizações da sociedade civil ou empresas, salvo raras excepções, e matou a imprensa privada que floresceu desde 1992 ao início dos anos 2000. Agora, em situação de policrise, será mais difícil encontrar saídas. O exemplo que vem de Portugal é inquietante, pois o carácter e as práticas populistas que vem adoptando não lhe permitem qualquer oposição ao sistema, visto ele ser o próprio sistema. Afinal, um equívoco mais.