Chegou-se a tal nível de insensibilidade governativa que se morria - e continua a morrer-se - nos hospitais públicos por falta de uma simples aspirina ou de um outro fármaco qualquer para diminuir o efeito perverso de uma febre persistente. Por conseguinte, todos estes acontecimentos iam tendo lugar aos olhos de todos nós... O silêncio ou o medo ou simplesmente a obrigação de estarmos calados fizeram com que se chegasse mais longe na arrogância; se atingissem níveis tais de abuso de poder que vimos gente chegar ao Governo num dia com os pés descalços e no outro já se lhe podíamos identificar mil pares de sandálias perante o mar de dificuldades que o seu consulado espalhava.

E o mais grave: em círculos restritos, estas pessoas tinham a prepotência de reivindicar a legitimidade de se enriquecerem nos moldes como o faziam! Faziam questão de ser aclamadas. Chegou-se até ao ponto de quererem levar para a praça pública os efeitos hediondos do "ar senhoril" e boçal que os caracterizava... Ainda hoje se conhecem ruas em determinadas artérias de Luanda, quiçá do país, onde o dito cujo governante ou ex-governante tomou a decisão de mandar asfaltar apenas a rua ou a travessa onde está localizada a sua residência, passando aquele asfalto ali colocado e a sua casa a servirem de referência toponímica do local. "Na rua do senhor ministro, ou do empresário ou do político fulano". Era assim!

E o pior de tudo isso nem era ver os governantes a enriquecerem-se sem causa; o pior era ver cada vez mais a degradação da vida das famílias - como até agora acontece - e perceber a olho nu a sensação de impotência de as ver reivindicar pelo mínimo. O saneamento básico tornou-se num caos. Vimos surgir inúmeras empresas de recolha de resíduos, todas elas associadas a figuras do Governo, e todas elas incapazes de manter a capital limpa e livre de um fenómeno com o qual Luanda tem andado a braços desde o tempo em que estavam entre nós até filipinos. Que "desconseguiram" também!

Em Benguela, curiosamente, o actual governador quando lá chegou baixou de 2,5 mil milhões de kwanzas para 500 milhões de kwanzas o orçamento para o saneamento básico. E, com silêncio cúmplice, limitou-se a afirmar:

"Tivemos de pôr fim a muito negócio sujo. Se o lixo é sujo, muitos andavam a chafurdar nele para tirar lucro indevido e a roubar ao Estado. Acabámos com este negócio, porque estas pessoas não podem continuar a viver à custa do Estado, roubando a todos nós. Pagávamos milhões diariamente, muitos milhões, agora vamos mostrar que a administração pública é capaz"", disse-o, sem se comprometer a levar os responsáveis à Justiça. E, atenção: o discurso foi feito na qualidade de primeiro secretário do partido governante em Benguela. Logo, estava-se entre camaradas!

Há pouco menos de uma semana foi-nos dado a ver mais uma clara prova de que o problema não está apenas em quem está a governar, mas também nos governados; o juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo e presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial teria enviado uma carta ao presidente da Assembleia Nacional a alegar que um dos juízes que concorreu ao cargo de presidente da Comissão Nacional Eleitoral teria desistido das reclamações (providências cautelares) apresentadas, o que teria ajudado a dar posse a Manuel Pereira da Silva "Manico". O juiz-concorrente veio logo a terreiro dizer que o juiz-conselheiro presidente do Supremo "mentiu" e nada se ouviu.

A sociedade civil organizada limitou-se a ouvir a UNITA dizer que "aquilo era mais uma arbitrariedade do costume". Os outros partidos da oposição com assento parlamentar juntaram-se ao Galo Negro e abandonaram o Plenário. Mas isso não impediu a tomada de posse. Mais uma prova de silêncio foi dada, logo em relação a uma matéria que a todos nós diz respeito, porque está em causa não apenas o cargo, mas a decisão que vai fazer a diferença à vida de todos os angolanos. Mas o maldito silêncio insiste e persiste e o único culpado não deverá ser apenas quem está a liderar o processo político, que é o mentor e o grande beneficiado, mas quem comunga calado, e nisso estamos todos nós envolvidos.