Por outro, continua a assistir-se a manifestações de ódio exacerbado, de exclusão do Outro e de intolerância para com sujeitos sociais e políticos não comunguem das mesmas afinidades partidárias.

Tudo isto lembra uma outra saga, a de ódio entre os movimentos de libertação nacional, na incessante diligência para anular ou mesmo eliminar fisicamente o Outro. Foi aí que se começou a temperar o aço com o propósito de exclusão quem de se colocasse do outro lado da barricada. E este é um passivo que, mais do que custar caro ao país já naquele momento, foi o mote para outros descalabros que custaram inúmeras vidas.

Hoje, as várias reacções percebidas em comentários ou posts feitos nas redes sociais fazem adivinhar um longo percurso de catarse que Angola tem ainda de enfrentar. Se calhar, um percurso ainda mais longo e tortuoso do que o tempo que levámos para virarmos a página da guerra para o calar das armas, porque não só não se investiu na relação dos angolanos com o seu próprio país, como nunca se deu a devida importância às causas que nos levam, ainda hoje, a andarmos indiferentes perante situações que revelam um défice de auto-estima e de orgulho próprio; o que cada povo e cada nação sente de si em relação ao mundo, sem nunca pretender anular o Outro por ser quem é ou por ter deixado de ser quem foi.

Recentemente, em Monte Belo, no município do Coboio, em Benguela, tivemos o relançamento de cenas de intolerância política envolvendo militantes do MPLA e da UNITA. O país, de um modo geral, reagiu em surdina, assobiou para o lado. Fez conta que pouco tempo depois de um processo eleitoral ordeiro e pacífico esses eventos repugnantes não fizessem qualquer diferença na vida de um país que se pretende próspero e progressista. Foi esta a mesma reacção dos meios públicos de imprensa, que, uma vez mais, não encontraram o factor notícia. E sobre o caso nem um simples espirrar se ouviu.

Toda esta inacção é uma demonstração evidente de que, em matéria de intolerância política "tanto faz como tanto fez", o país vai continuar o mesmo, até que alguém jogue a mão à obra do edifício da concórdia. Enquanto não acontece, o país vai continuar a assistir a tudo isso e atribuir as causas a sentimentos de vingança pelo ambiente de guerra civil que se viveu naquela parcela do território angolano entre militantes dos partidos beligerantes. Pois trata-se de um assunto que acontece no Coboio e deverá dizer única e exclusivamente respeito àquelas gentes e nada mais! Parecem estar a dizer!

Os episódios do Bocoio, estes últimos e os anteriores, lembram-nos três níveis de responsabilidade que historicamente o MPLA tem, exactamente por ser este o partido que responde há 40 anos pelo país. Primeiro, responsabilidade perante si mesmo e os conflitos internos que custaram a vida muitos; segundo, responsabilidade conjunta com a UNITA, enquanto antigos beligerantes, e, terceiro, responsabilidade perante o legado de violência que o país herdou, na qualidade de partido único que, de modo autoritário, se acaparou da governação, excluindo outros actores, partidários e não só.

Foi na guerrilha que o MPLA se viu a braços com uma série de situações de conflitos internos que levaram a que o partido estivesse, e ainda hoje esteja, ressentido de não ter sabido gerir os vários posicionamentos político-ideológicos que dele emanaram. O MPLA não foi capaz de estar acima desses conflitos e superá-los usando meios pacíficos. Não foi a tempo sequer de ensaiar um mecanismo que levasse a inversão de tudo aquilo que veio a seguir, desde a Revolta do Leste, Revolta Activa, 27 de Maio; depois a propaganda de canibais impingidos à FNLA, a "sexta-feira sangrenta", o assassinato dos tocoístas, etc., etc. Nunca se criou uma cultura de diálogo a contrariar o legado de violência.

Todos esses eventos, associados ao longo conflito armado, com dupla responsabilidade, UNITA e MPLA, configuram aquilo que é hoje a estrutura emocional do angolano perante situações de intolerância política. Ou seja, dito de uma outra maneira: não há o mesmo nível de entendimento sobre a questão da intolerância política, porque há inúmeros dossiers de intolerância por resolver; porque entendemos que a maior responsabilidade sobre a questão do combate à intolerância política é do MPLA não por ser um partido intolerante, mas porque cabe a este partido governante há 40 anos arrumar todas as peças soltas do país para que tenhamos uma história mais digna de ser contada, mesmo quando narrada com dor e pesar.

Assim como é intolerância política o que se passa hoje no Bocoio, é igualmente intolerância política o facto de o nacionalista angolano Adolfo Maria, que na semana passada completou 82 anos de idade, não ter até hoje o seu passaporte de cidadão angolano emitido, tudo porque foi expulso de Angola pela polícia política de então, a DISA, que foi incapaz de o encontrar no seu auto-exílio, na ressaca ainda da Revolta Activa. Este passaporte que se nega a Adolfo Maria simplesmente por revanche e intolerância política, em nosso entender, alimenta o sentimento de indiferença quando no Bocoio, no Cuango, na Lunda-Norte e noutros espaços do país acontecem eventos de violência política. É nesse sentido que entendemos que a maior responsabilidade é do MPLA e não de um outro.

Quem fala em Adolfo Maria fala igualmente em Ana Maria de Mascarenhas, compositora e artista angolana, igualmente expulsa do seu próprio país, o qual ela ajudou a construir, e Viriato da Cruz, cujo Prémio Nacional de Cultura e Artes na categoria de Literatura lhe foi retirado. A actual liderança do país tem em mãos a chave mestra para ter o peito inchado de coragem e fazer com que comecemos a arrumar a nossa história, pondo as pessoas a falar e a discutir os assuntos abertamente. Com particularidade para o 27 de Maio e outros, sobre o qual é preciso uma catarse geral e uma abordagem acima de tudo pedagógica que ajude não a atiçar ódios entre os angolanos.

Se vamos construir um novo país a partir da ideia reformista do novo PR, vamos fazê-lo com todos, com os militantes e não militantes, com os partidários e não partidários. Com quem apoia a governação e com aqueles que a contestam construtivamente. É preciso igualmente compreender que o país não pode continuar a esgotar-se na ideia monolítica ou na política de via única. Era importante começarmos a dizer não a tudo aquilo que coloque em perigo bem-estar de todos nós, políticos ou não.

Angola precisa de mudar de página, e não conseguirá fazê-lo enquanto o MPLA, que tem responsabilidade históricas acrescidas, não tomar o mastro como um todo e zarpar para uma verdadeira descoberta de si mesmo. É preciso o MPLA encete o processo de conciliação consigo próprio, a seguir com a UNITA e, quando esses dois níveis de conciliação estiverem efectivamente realizados, aí sim, o país estará em condições de dialogar a uma só voz e melhorar a sua auto-estima. Longe desta perspectiva continuaremos a viver uma ilusão em forma de reconciliação nacional que ainda hoje faz inúmeras vítimas.

Texto publicado na edição 503 do Novo Jornal, de 5 de Outubro