Dentre os principais erros que se podem apontar à super-estrutura ideológica que nos governou desde 1979 foi, ao contrário do período anterior, um progressivo, sustentado e consciente afastamento entre os seus integrantes - digamos que a sua esmagadora maioria uma vez que nunca deixou de haver excepções, hoje reconhecidas e a reconhecer - e a realidade de uma população que, habituada a ser governada por gente que tinha a plena consciência da transitoriedade da sua existência, punha, no eixo central da sua estratégia de governação, uma co-relação entre o aumento da criação de riqueza e a melhoria substancial das condições de vida dos cidadãos.

Ainda no tempo do partido único, era já clara a divisão entre os que tinham como pressupostos a manutenção de um regime que se aproximasse do conceito então utilizado de democracia popular, e os que, de forma mala-disfarçada, não enjeitavam nem escondiam a vontade de rapidamente criarem uma máquina governamental que pudesse ser colocada ao seu serviço e dos privilégios que já então buscava adquirir.

É verdade que a evolução da situação política que vivíamos então, com uma urgência indiscutível de manter a unidade (ainda que pontual e fortuita) perante situações graves de guerra e da pretensão do Ocidente de manter Angola na sua dependência geo-política, tornou secundárias essas preocupações, o que deixou muito espaço de manobra para que, quer as velhas pequena e média burguesias nacionais quer alguns que se arrogavam o direito de, por terem de algum modo participado na luta de libertação devessem ter privilégios que o comum dos compatriotas não podia ter, se organizassem e tomassem conta de várias estruturas do estado, essenciais para a sua manutenção e para a governação do país.

A inesquecível história do quadro e da peça, a que voltaremos um dia desses, no ano de 1982, foi o ponto de partida que provava já à época haver uma clara distinção entre os que queriam servir o Estado angolano e o projecto político então definido e os que já começavam, ainda com alguma vergonha e mal disfarçado pudor, a quererem pôr o Estado - e o partido que o dirigia - ao seu serviço, ao serviço de interesses pessoais e classistas. O que mais tarde viríamos a chamar de lumpen-burguesia, já estava em plena formação há muitos anos, sem que houvesse, do ponto de vista do equilíbrio das forças políticas em presença, quantidade e qualidade suficientes para travar esses desmandos.

A aventura do quadro e da peça, motivo para o afastamento propositado e já então premeditado de algumas figuras cuja matriz ideológica e comportamento moral, ética e humanista eram irrepreensíveis - logo, figuras a "abater" no processo de transformação já em curso, com a clara intenção de se iniciar o processo de esvaziar o MPLA dos seus quadros mais bem formados e preparados - as coisas só não correram mais rapidamente mercê das graves crises que o país foi atravessando e que culminariam, enfim, no regresso definitivo da paz.

Vencida a guerra, minimamente estabilizado o país, foi possível retomar o projecto já iniciado na década de oitenta, que, entretanto, foi-se mantendo a meio gás, mesmo que muita gente já tivesse iniciado, por caminhos sempre ínvios, a acumulação individual de riqueza ilícita. O resto do panorama é muito mais fácil de entender, sobre o que se tornou Angola a partir de 2002.

Os momentos que acabamos de viver com a realização deste congresso do MPLA, são, por isso, muito mais sérios, profundos e importantes do que possa à primeira vista parecer. É um reencontro do MPLA com a sua essência. É um corte com uma realidade dramática, que vivemos demasiados anos, por razões que hão-de ser conhecidas por todos. Mas é, acima de tudo, o único caminho para o MPLA, os seus dirigentes, os seus militantes, poderem voltar a andar de cabeça erguida. E a esperança estar hoje viva e acesa, nas nossas mãos e à nossa frente.