Essa lucidez, esse reconhecimento, essa percepção inteligente de que todos nós, em particular ele próprio, o novo e inesperado Presidente da República da República Popular de Angola teríamos que passar por uma longa fase de adaptação e rearranjo das premissas que orientavam a inteligência, a vasta cultura, o faro político e a seriedade acima de toda a suspeita de António Agostinho Neto, não em muito tempo deram lugar a um afastamento progressivo, para usar um termo simpático, da maioria dos compagnons de route do Presidente Neto.

A verdade é que a gravidade da situação político-militar vivida então no país, levou-nos a todos, entre militantes do MPLA e patriotas sem qualquer vínculo partidário mas que tinham a convicção de estar do lado certo da História, a darem todas as condições que JES foi pedindo, em função das sucessivas fases que fomos vivendo, quer interna quer externamente.

Os anos passaram e em 2001 diria: "A minha geração já cumpriu o seu papel". O alcance da paz e pouco depois o boom do petróleo, que traria para Angola um aparente (e só aparente) desenvolvimento conduziu a um processo esquizofrénico de culto da personalidade que não poderia trazer, como toda a história da humanidade no-lo comprova, bons resultados. Os poderes - a todos os níveis - começaram a ser esvaziados e chegámos a um ponto em que tudo, rigorosamente tudo, dependia do Chefe de Estado.

É evidente que a responsabilidade dessa situação anormal não pode ser apenas assacada ao actual presidente do MPLA. A sua "entourage" em particular, criou as condições, por forma a tirar todas as vantagens, possíveis e impossíveis, da situação, utilizando até à exaustão o nome do presidente. Vieram daí "as ordens superiores", recordam-se? Que serviu para todo o tipo de desmandos e atitudes, decisões e práticas governamentais anti-constitucionais.

Porém, a verdade é que a lucidez, o bom senso, a argúcia já iam desaparecendo deste longo jogo de xadrez. Mesmo que não esqueçamos que, por várias vezes, amigos e amigas de longa data tenham procurado chamar a atenção para a acelerada deterioração da situação e para o comportamento de muito(a)s dos que circulavam à sua volta.

Um sentimento de indignação começou a pairar um pouco por todo o lado, em todos os extractos da população e foi-se radicalizando logo depois de tomar a decisão de dar duas funções da mais alta importância a dois dos seus filhos.

Felizmente, e por isso temos a consciência tranquila, fazemos parte dos que, sempre que fosse possível e desde há pelo menos uma dezena de anos, à custa um sem número de vezes de mensagens anónimas, ameaças, "avisos às famílias", recados de sorriso hipócrita e testas franzidas, enfim, um rol de (a)normalidades, absolutamente inaceitáveis num estado presumivelmente de direito, dito livre e democrático.

As ondas de indignação, porém, cerceadas ou não, tornam-se imparáveis e os primeiros sinais de que estava a chegar o momento de pôr termo à "farra" foram sendo dados.

É preciso reavaliar a nossa ideia de política. É preciso estudar novas formas de pôr em prática a sua natureza. Há um sem número de direitos, de valores, que demos por adquiridos e perdemo-los. A indignação por si só nada resolve e só se torna útil quando é chamada a participar na definição dos problemas, no estudo das suas soluções, passando a ser uma arma de consolidação da democracia e da co-responsabilização de todos, independentemente do seu estatuto ou da classe social a que pertençam. E para novas políticas é imprescindível a definitiva mudança geracional. Porque, para além de tudo o que tem sido apontado, é fundamental que reste, da parte das gerações que somos hoje e das que estão a nascer, uma réstia de respeito, de consideração e de admiração pelos que, num dado momento da nossa história, se esqueceram de onde vieram, do que nos prometeram e das juras que fizeram. E para que o julgamento futuro não se faça olhando apenas para os resultados negativos que resultaram das suas práticas.